sexta-feira, 24 de julho de 2009

Comissionamento vicioso

Autor(es): Mario Cesar Flores
O Estado de S. Paulo - 24/07/2009

Nosso serviço público viveu uma curta etapa de boa qualidade, conduzida pelo Departamento Administrativo do Serviço Público criado pelo presidente Vargas (1938), a que a reforma do governo Castelo Branco deu alento modernizador, abrindo à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) setores não caracterizados como carreiras de Estado. Já no pós-Constituição de 1988 ele vem deixando a desejar: existe nele, é claro, pessoal preparado e aplicado, mas também pessoal pautado pelo patrimonial-clientelismo, alheio ao ethos weberiano do serviço público.

É comum a crítica aos efetivos, que, de fato, cresceram muito nos últimos 15 anos. Porcentualmente mais no Legislativo e no Judiciário, se bem que também (menos) no Executivo - neste a partir de 2003. No Executivo o efetivo não é exagerado, mas é preocupante a distorção funcional, simbolicamente refletida nesta comparação (Estado, 12/4): o número de servidores da "Presidência Lula" é quase o dobro da "Presidência Obama". Governar o Brasil será tão mais complexo...? Em contrapartida, faltam profissionais de saúde, educação, segurança, áreas de atendimento ao povo...!

Quanto aos cargos comissionados, as razões que os justificam são a necessidade transitória de habilitações não supridas pelos quadros formais, que realmente pode existir; o atendimento à confiança pessoal, limitadamente compreensível; e o preenchimento de cargos de supervisão política, compatível com a sistemática democrática. Todas razões que, nas democracias consolidadas, com serviço público bem estruturado e eficiente, não justificam número elevado de cargos comissionados.

O inchado apoio das Casas Legislativas e os gordos gabinetes dos legisladores, com servidores comissionados, até em municípios em ruína financeira, são distopias insólitas, legais ou consensualmente aceitas. O que seria assessoria a vereador em município pequeno, onde são diminutas as demandas à vereança, todos se conhecem e conhecem os problemas locais? O que justifica 20 assessores a vereador? Se mais de 60% dos funcionários da Assembleia Legislativa de São Paulo são comissionados, se o Senado conta com quase 3 mil comissionados, cabe perguntar: o concurso não se aplica ao Legislativo?

Nos Executivos, a cada mudança de governo pode ocorrer uma enormidade de comissionamentos, aproximadamente 20 mil na União, cerca de cinco vezes o número norte-americano! Tal ordem de grandeza nos leva a conjeturar sobre o caos administrativo que nos ameaçaria se o regime fosse parlamentarista, em que é factível a mudança de governo mais frequente do que a resultante de eleições periódicas no presidencialismo. Nos parlamentarismos europeus é muito pequeno o comissionamento!

Essa ameaça ao direito da sociedade à administração pública de boa qualidade prossegue incólume, comprometida por duas distorções:

O comissionamento vem sendo pautado não apenas pela necessidade temporária, confiança pessoal e supervisão política, mas também pela cultura simbolizada nesta frase emblemática, de postulante a cargo no butim eleitoral de 2003: "Chegou a nossa vez." Faltou complementar:"de desfrutar o Estado". Outra, não menos emblemática, de prefeito no interior do Nordeste: "Se não posso nomear meus parentes, de que adianta ser prefeito?" As teatrais nomeações de ministros, inseridas na equação do apoio ao Executivo e estendidas a escalões secundários influentes no controle de recursos vistos como patrimônio político, refletem o problema: o importante é o poder e seu usufruto. Problema que enseja frases deste jaez: como aliado do governo, o senador xis precisa "... ter mais do que um carguinho na direção dos Correios..." E na reforma da administração (março de 2005) um prócer partidário declarou que seu partido queria "coisa mais recheada", indicação de que o apoio ao governo devia ter por contrapartida presença compensadora no poder (todas as citações, publicadas na imprensa).

E o apego ao cargo, coerente com a aspiração ao emprego público, em particular da classe média, crítica costumeira da burocracia estatal, mas candidata a ingressar nela, leva comumente o comissionado a hierarquizar sua conduta funcional em função de sua dependência clientelista: seu desempenho correto e objetivo vale menos do que o interesse do padrinho.

Além de secundarizar a competência, o comissionamento faz uso de despautérios, entre eles o difuso conceito de assessoria, estendido da assessoria efetiva à atividade de contínuo, à assessoria nenhuma. Nosso comissionamento viciado - "profissão" de servidores que, dependendo do padrinho, mudam aleatoriamente de cargo porque são ecleticamente habilitados (serão mesmo?) para todos (para ser trabalhador de empresa pública há concurso, para ser seu presidente basta cacife político) - aproxima nossa democracia dos autoritarismos do século 20. Se não por motivos ideológicos, ao menos com vista ao usufruto do poder. Sem descartar a primeira motivação, sensível em cargos relacionados à questão rural, por exemplo, aparentemente vem sendo mais forte a segunda, a que o comissionamento atende o "chegou a nossa vez"!

É difícil corrigir a anomalia, com nossa cultura patrimonial-clientelista e carreiras formais mal organizadas, exceto algumas cuja especificidade inibe o comissionamento - as militares, a diplomacia e poucas outras (detalhe promissor: a noticiada resistência - julho de 2009 - de funcionários da Receita à nomeação de secretário/a de fora de seu competente quadro). Mas, embora difícil, há que reduzir o número de cargos comissionados e sujeitá-los a critérios de qualificação, redutores da influência da política fisiológica, clientelista e nepotista.

As considerações deste artigo se aplicam às empresas estatais, mas para elas - não todas, seria irrazoável pensar isso para a Petrobrás e o Banco do Brasil, por exemplo - existe alternativa: a privatização.

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