Autor(es): Weder de Oliveira
Correio Braziliense - 26/09/2011
Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público e
ministro substituto do Tribunal de Contas da União
Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal, fortemente
fundamentado nos "deveres de boa-fé e incondicional respeito à confiança
dos cidadãos", alterou sua jurisprudência de longa data, passando a
entender que a aprovação dentro do limite de vagas definido no edital gera para
o candidato aprovado em concurso público mais do que expectativa de direito —
gera direito subjetivo líquido e certo à nomeação, exceto em situações
excepcionalíssimas, supervenientes, imprevisíveis e graves, judicialmente
sindicáveis se alegadas.
De alternativa às vicissitudes da iniciativa privada, a via
rápida do concurso público a bom padrão de vida tornou-se a primeira opção
profissional de milhões de brasileiros em vista da estabilidade, melhor
remuneração inicial e condições privilegiadas de aposentadoria e pensão. Um
case sociológico que suscita investigação.
Às tradicionais alternativas profissionais, somou-se a de
ser servidor público. Famílias que há alguns anos cogitavam ver os filhos na
administração pública somente na magistratura ou no Ministério Público hoje se
mobilizam para dar-lhes o apoio necessário ao ingresso em outras carreiras.
O concurso público tornou-se empreendimento profissional.
Não se compadece mais com o amadorismo e o voluntarismo. Quem escolhe essa alternativa
precisa dedicar-lhe forte engajamento emocional e persistente e planejada
preparação. Nesse caminho, empregos serão abandonados, rotinas familiares serão
refeitas, momentos de lazer relegados, maternidade e paternidade postergadas.
Muito tempo e recursos financeiros preciosos serão investidos no projeto.
Do lado da administração, o concurso público é um processo
administrativa e financeiramente oneroso, conduzido para resolver o complexo
problema de avaliar milhares de candidatos, sob os princípios da isonomia e
impessoalidade, para escolha das pessoas certas para os lugares certos.
Em torno dos concursos públicos formou-se um setor econômico
bilionário, de multifacetado empreendedorismo (de livreiros a candidatos), que
reclama a proteção dos tribunais contra abusos decisórios e falhas de
organização.
A relevância dessa questão pode ser sentida na leitura do
quase sempre esquecido e negligenciado art. 169, § 1º, da Constituição Federal,
que condiciona a admissão de pessoal à existência de autorização específica na
lei de diretrizes orçamentárias e de dotação orçamentária prévia e suficiente
para suportar as novas despesas, o que significa submeter ao crivo do Poder
Legislativo a necessidade e o planejamento financeiro de novas admissões.
Não pode o poder público, portanto, movimentar milhares de
cidadãos ao redor das promessas que faz ao chamá-los a disputar determinada
quantidade de vagas para, posteriormente, decidir se irá ou não nomear os
aprovados, segundo alegadas conveniências de momento.
A mudança de orientação do STF conforma-se à evolução
sociocultural da sociedade brasileira e pacifica entendimento que estava em
franca consolidação no Superior Tribunal de Justiça. Contudo, essa decisão não
terá encerrado o debate se a administração, em vez de assimilar sua ratio
decidendi e lançar editais com quantificação verdadeira das admissões que irá
realizar, procurar evadir-se do cumprimento do dever de nomear reduzindo ao
mínimo as vagas fixadas no edital. Se agirem dessa forma, as administrações
submeterão os candidatos a insegurança maior do que a decisão do Supremo visou
remediar, o que converteria a decisão numa vitória de Pirro da cidadania. Se
agirem assim, imputarão ônus desnecessários e gastos inúteis ao Estado
brasileiro, ao incitarem candidatos a levarem aos Tribunais novas demandas
judiciais.
Os concursos públicos precisam de melhor governança.
Requerem sistemático e permanente aperfeiçoamento normativo e operacional, com
objetivos de alçar a transparência dos procedimentos ao nível mais alto
possível, garantir a isonomia e assegurar aos que pretendem se lançar em
empreendimento de tal envergadura que os resultados que todos alcançarão serão
fruto dos próprios esforços e da legítima disputa segundo regras isonomicamente
formuladas, e que não verão suas expectativas e direitos frustrados por
direcionamentos e favorecimentos imorais, cada vez mais sutis, havidos nos
pontos de menor ou nenhum controle, o que ainda ocorre.
Aguardemos o desdobramento da novel decisão do STF antes de
afirmarmos que se encontra superada mais uma etapa do longo processo histórico
de afirmação do princípio do concurso público, o qual constitui um
"direito fundamental expressivo da cidadania", na expressão da
ministra Cármen Lúcia.