Roberto Macedo
O Estado de S. Paulo
- 01/03/2012
Um dos maiores privilégios no Brasil vem da diferença entre
o regime previdenciário do funcionalismo público e o dos trabalhadores cobertos
pelo INSS. O contraste é particularmente forte no governo federal, no qual as
remunerações são maiores. Alguns dos números que evidenciam isso estavam ontem
neste jornal: o déficit previdenciário da União alcançou R$ 56 bilhões em 2011,
para cerca de 1 milhão de aposentados e pensionistas; já o do INSS foi de R$
35,5 bilhões, para 28 milhões nessa condição.
A iniquidade ocorre porque o sistema do funcionalismo
garante aposentadoria integral com o último salário da ativa a muitos
servidores (os admitidos até dezembro de 2003). Há regras também mais
favoráveis para os demais, e para todos eles não há o teto das aposentadorias
do INSS, hoje em R$ 3.916.
Embora antigo, o problema só foi enfrentado no governo
Fernando Henrique Cardoso, via Emenda Constitucional (EC) n.º 20, de dezembro
de 1998, que entre outras medidas abriu a perspectiva de um teto como o do INSS
e previdência complementar para servidores públicos, desde que aprovados por
lei complementar, que exige quórum qualificado. Em seguida, foi enviado ao
Congresso um projeto nessa direção, mas nem chegou a voto, dada a pressão de
interesses corporativos.
Depois de FHC esperava-se que o ex-presidente Lula,
ex-trabalhador associado ao INSS, reduzisse tal iniquidade, colocando pelo
menos os novos servidores sob regime similar ao do INSS e do seu teto. Com isso
os interessados em benefícios maiores teriam de recorrer à previdência
complementar. Entretanto, Lula sucumbiu a pressões corporativas, também
avalizadas pelo seu partido.
Houve, porém, avanço em paralelo, pois logo no início de seu
governo, pela EC 41, de dezembro de 2003, limites de idade para aposentadoria
(55 anos para mulheres e 60 para homens), já instituídos pela EC 20 para novos
servidores, foram estendidos a todos, ainda que com alguma flexibilidade. E
mais: foi eliminada a exigência de lei complementar para estabelecer o teto e a
previdência complementar desses servidores. Só em 2007, contudo, chegou ao
Congresso um projeto de lei ordinária com tal objetivo. E só ontem um
substitutivo desse projeto foi aprovado na Câmara dos Deputados. Isso no seu
texto-base, ficando os destaques para votação ontem, segundo este jornal.
Nesse percurso, o noticiário recente concentrou-se no votar
ou não, sem entrar no conteúdo e no mérito do projeto. No que tem de bom, a
previdência complementar que institui será baseada no mecanismo de contribuição
definida. Ou seja, o benefício previdenciário virá dessa contribuição e o valor
dele dependerá dos aportes feitos pelo participante e pelo governo federal para
constituir reservas que responderão pelo pagamento.
Esse mecanismo se contrapõe ao atual, de benefício definido,
no qual este se pauta pelo último salário da ativa ou por médias de salários
passados. Como resultado dessa e de outras razões, como a não inexistência de
reservas e a política salarial governamental - ou a ausência dela, por força de
interesses corporativos -, o sistema é altamente deficitário, como apontado
acima.
No que tem de ruim, entre outros problemas o crucial está no
§ 3.º do artigo 16 do projeto, onde se diz que "a alíquota da contribuição
do patrocinador (...) não poderá exceder (...) 8,5%". Aliás, esse aspecto
ficou entre os destaques a serem votados ontem, cujo resultado ignorava ao
concluir este texto.
Do ponto de vista das finanças públicas, e do cidadão comum,
que com seus impostos custeará essa contribuição, essa taxa é o aspecto
fundamental. Mas como avaliá-la, se alta ou baixa? Lidei com esse problema por
vários dias. Consultando uns poucos casos de empresas que têm previdência
complementar, soube ser mais comum a taxa de 5%. E ao recorrer a um
especialista em seguros, Francisco Galiza, a quem agradeço, ele me conduziu ao
Relatório de Atividades (2010) da Superintendência Nacional de Previdência
Complementar, órgão do Ministério da Previdência Social e, portanto, fonte
oficial.
Ora, o relatório diz que no mesmo ano a taxa média de
contribuição patronal aos planos em manutenção na modalidade de contribuição
definida foi de 4,6%, mostrando que os 8,5% citados estão bem acima dessa média
e, assim, constituem um privilégio. Aliás, a taxa é superior até mesmo à média
das alíquotas dos planos de benefício definido, que foi de 5,9% no mesmo ano.
Com isso servidores, no novo sistema proposto, poderiam
escolher para sua contribuição uma taxa mais custosa para o governo, o que
levaria ao privilégio, configurando uma iniquidade. E há outra: quem, por
exemplo, tiver um salário de, digamos, R$ 10 mil por mês terá mais condições de
optar por taxas mais elevadas do que quem ganha pouco acima do teto ou mesmo
abaixo dele, pois este último grupo também poderá aderir à nova previdência. No
caso de rendimentos menores, é sabidamente maior a pressão dos componentes essenciais
sobre o orçamento doméstico. Em síntese, quem ganha mais receberá
proporcionalmente mais do governo.
Notei também que do projeto original, de 2007, para o
substitutivo a taxa passou de 7% para 8,5%, por mais pressões corporativas
exercidas nos meandros da Câmara. E tudo com muito silêncio, como num funeral
no qual se enterrarão as esperanças de que privilégios previdenciários de
servidores seriam efetivamente corrigidos.
Se a votação prevista para ontem manteve uma delas, ou outra
ainda elevada, só o Senado poderá ressuscitar essas esperanças. Mas precisarei
ver para crer, pois no Congresso a equidade social só tem espaço garantido nos
discursos. Na hora de votar seus membros costumam se pautar mais pelas pressões
dos mais próximos do que pelos interesses dos contribuintes, que deveriam
defender.