domingo, 18 de março de 2012

O feitiço do supersalário



Ana Dubeux

Correio Braziliense      -      18/03/2012






O último concurso do Senado não me impressionou apenas pelos problemas, que levaram à anulação de provas e às investigações.

A quantidade de candidatos é absurda: quase 160 mil pessoas disputando pouco mais de duas centenas de vagas. Tamanho interesse nos leva a um inevitável pré-julgamento: obviamente essas pessoas não estão apenas em busca de um emprego, mas de um salário excelente. O leitor há de perguntar: "E não é legítimo querer uma ótima remuneração e tudo o que isso pode representar?" Certamente é.

Mas fico imaginando, daqui a muito pouco tempo, uma sala cheia de crianças respondendo à clássica pergunta "O que você quer ser quando crescer?" da seguinte forma: "Meu sonho é ser analista legislativo", "Adoraria ser auditor do TCU", e por aí vai. Seria incrível encontrar pequenos apaixonados pela ideia de ajudar a criar leis, querendo fiscalizar as obras e o uso da dinheirama arrecadada com os impostos.

O que ocorre hoje, no entanto, é que os altos salários não criam somente altas expectativas de estabilidade e até riqueza, acabam por embotar verdadeiras vocações. E os professores, os bombeiros, os médicos, os cientistas, etc.? Que tipo de atrativo essas importantes carreiras exercem hoje? Arrisco dizer: nenhum — ou atraem apenas os predestinados a viver de pires na mão e a renegar a imensa magia do consumo desenfreado.

Tais carreiras e outras, tão importantes, nunca foram prioridade. A consequência disso é que, enquanto brilhamos do ponto de vista econômico, encolhemos em quesitos importantíssimos para um crescimento sustentável, como a inovação, a educação, a infraestrutura. Essa conta será cobrada — e não vai demorar. 

Um país nunca será rico diante da fraqueza de ideias e mentes preparadas para influenciar gerações futuras. Poderá fazer um milhão de obras, guardar bilhões de dólares, ter assento entre os países mais influentes do mundo, mas será sempre pobre se não conseguir educar crianças, impulsionar talentos, estar na vanguarda do conhecimento.

O Brasil está crescendo e, com ele, a ideia de que salários altíssimos são a materialização da felicidade e da realização profissional. No funcionalismo público, o reflexo disso se traduz na concorrência exacerbada das seleções com vencimentos capazes de inflar o sonho de ter o primeiro milhão antes dos 30 anos.

Não compactuo com a ideia preconceituosa de que todo servidor ganha fortunas e não dá expediente. Acredito que a obrigatoriedade do concurso é uma conquista da sociedade civil e um caminho para a profissionalização da burocracia, embora não possamos ter a certeza de que as provas são, de fato, bem elaboradas a ponto de selecionar os melhores — como você pode ler em reportagem publicada hoje na editoria de Economia.

Na iniciativa privada, a busca pelos supersalários leva jovens aprendizes a dinâmicas e processos de seleção muitas vezes malucos. Precisam ter opinião formada sobre a legalização da maconha, por exemplo, tema que ainda queima as pestanas de estudiosos do mundo inteiro.

Precisam criar empresas fictícias e resolver problemas que gestores com larguíssima experiência não conseguiriam naquele espaço de tempo. Cadê o feeling capaz de reconhecer um talento no arriar das malas? Cadê o sonho de realizar algo? Cadê o interesse pelo desafio, pelas causas humanitárias? Tudo isso ainda sobrevive, sim, mas em escala cada vez menor. Esse mundo, vasto mundo, está ficando miudinho, e os sonhos passam a caber numa carteira recheada.



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