Consultor Jurídico
- 09/07/2015
Em nota publicada no site da revista Veja, o colunista Lauro
Jardim noticia que um parlamentar indagou ao Ministério do Planejamento o
número de cargos comissionados no governo federal e recebeu a informação da
existência de 23.941 cargos. Segundo o jornalista, “na França este tipo de
nomeação fora da carreira pública não passa de 4,8 mil vagas e nos EUA, 8 mil.
O Brasil gastou R$ 1,9 bilhão com esses cargos comissionados no ano passado”. A
questão é ainda mais grave do que faz crer a notícia.
Como é sabido, o regime federalista de nosso país acarreta a
existência de estruturas autônomas de Administração Pública em cada um dos
diversos entes integrantes da Federação. Em pesquisa feita pelo IBGE em 2013,
intitulada “Perfil dos Estados Brasileiros”[1], constatou-se que a
administração direta dos estados brasileiros possui um total de 83.927
servidores comissionados e outros 435.551 agentes “sem vínculo permanente”,
sendo assim considerados pela pesquisa os que trabalham “por prestação de
serviços, sem vínculo empregatício e sem carteira de trabalho assinada.” Também
foram incluídos nesta categoria os autônomos, estagiários, voluntários e
cedidos por outras entidades.
A administração indireta dos estados, por seu turno,
composta por entes dotados de personalidade jurídica própria, apresenta números
igualmente impressionantes. A pesquisa constatou a existência de 31.662
servidores comissionados e outros 40.167 agentes públicos sem vínculo
permanente. Imagina-se que semelhante pesquisa envolvendo os comissionados dos
5.570 municípios brasileiros elevaria à estratosfera o número total da
categoria.
Em nossa triste tradição histórica de promiscuidade entre o
interesse público e os interesses particulares, os cargos comissionados ocupam
um importante capítulo ao permitir a perpetuação de um tratamento nobre para os
amigos do partido, do governante ou mesmo do próprio poder, já que muitos têm
adoração por ele. Essa história ganha contornos dramáticos diante da
constatação diária de que ainda hoje se dividem cargos entre amigos como se
fossem os antigos ofícios, distribuídos como honrarias pelo soberano de então e
recebidos por poucos privilegiados como suas verdadeiras propriedades
particulares.
Ao constituir a República brasileira como um Estado
Democrático de Direito, a Constituição determinou a plena igualdade entre todos
e aboliu todo e qualquer privilégio fundado em parentesco, amizade ou filiação
a partido político. Essa a razão de se consagrar o concurso público como regra
a permitir o equânime acesso de todos aos cargos e empregos públicos, de acordo
os méritos e virtudes de cada um.
Cargos em comissão são espécies de cargos públicos que
possuem dentre suas características essenciais a existência de vínculo
subjetivo de confiança e a desnecessidade de concurso para seu provimento.
Trata-se de cargos importantes e necessários para o exercício de atividades
essencialmente políticas, ligadas à identificação de prioridades e à escolha de
diretrizes que exigem certo grau de confiança, critério não aferido por
concurso público.
Cargos em confiança exigem tempo e dedicação integrais; os
que são legítimos costumam trazer mais desgastes e transtornos a seus ocupantes
do que propriamente benesses.
A importância do cargo em comissão é tamanha que a
Constituição expressamente delimitou seu campo objetivo de atuação: destinam-se
apenas ao desempenho de atribuições de direção, chefia e assessoramento (artigo
37, inciso V). A peculiaridade verificada na redação da regra constitucional é
que os termos utilizados possuem significados aproximados, talvez
complementares, o que impede uma conceituação precisa: a) chefia evoca
autoridade, poder de decisão e mando situado em patamar hierarquicamente
superior na estrutura da organização; b) direção liga-se a comando, liderança,
condução e orientação de rumos, gerenciamento; c) assessoramento envolve
atividades auxiliares de cunho técnico e especializado.
Desta forma, ofendem frontalmente a Constituição as leis que
criam cargos em comissão para desempenho de atividades materiais e subalternas
que, decididamente, não possuem um grau mínimo de direção, chefia ou assessoramento.
Não resisto à tentação de invocar o conhecido trocadilho com o cargo de
motorista, que consiste na atividade de dirigir, mas não pode ser considerado
cargo de direção para efeito do artigo 37, inciso V, da Constituição.
Os números citados no início deste artigo, entretanto,
delineiam o perfil do cargo comissionado “à brasileira”: existe em muita
quantidade — contam-se às centenas de milhares — e exige mais amizade do que
propriamente trabalho. É difícil imaginar que existam realmente necessidade de
tantos diretores, chefes e assessores.
Poder-se-ia perguntar qual a razão de tanta briga pelo
provimento dos cargos de confiança que contrariam a Constituição, pois não se
veem pedidos para que governantes consigam para os amigos ou correligionários
empregos na iniciativa privada. Não se trata meramente de buscar um emprego ou
ocupação: a disputa existe, inicialmente, porque se trata de um trabalho
tranquilo com remuneração razoável, com menos exigências do que a iniciativa
privada.
Com relação a outros cargos, existe por parte de alguns
disputa para a colocação das pessoas certas nos lugares certos para fazer
preponderar o interesse partidário em detrimento dos interesses e recursos
públicos. Trata-se de pessoas muitas vezes mais fiéis à autoridade que os
nomeou do que ao interesse público que devem servir, compondo o cenário
propício para o livre florescimento da corrupção.
O excesso e deturpação dos cargos comissionados possui ainda
o agravante de inviabilizar a transmissão do conhecimento e a sedimentação das
boas práticas relativas às atividades permanentes. Com efeito, não há como
construir uma administração eficiente sem formação e valorização de um quadro
de pessoal permanente para o exercício de atribuições que permanentes, que não
alteram sua substância com a passagem de mandatos eletivos.
Que as instituições de controle — notadamente, Ministério
Público e Tribunais de Contas — possam questionar a constitucionalidade das
leis que criam cargos em desacordo com a Constituição. O excesso e o
desvirtuamento desses cargos são, além de uma ofensa à Constituição, uma
agressão à República e ao povo que nela acredita.
[1] IBGE. Pesquisa de informações básicas estaduais. Perfil
dos Estados Brasileiros 2013. Rio de Janeiro, IBGE, 2014.