Consultor Jurídico
- 17/07/2016
Além de regular os aumentos remuneratórios de servidores,
que se direcionam a reengenharias ou revalorizações de carreiras específicas, o
inciso X, do artigo 37, da Constituição Federal determina que, anualmente,
todos devem, ao menos, receber uma recomposição equivalente à corrosão
inflacionária para manter o valor real de seus salários. A primeira hipótese é
chamada de reajuste, que fica condicionada à discricionariedade do governo. Já
a segunda é denominada revisão geral anual, impositiva e que deve ser fixada em
idênticos índices para todos os servidores.
É conhecido o fato de que o funcionalismo público federal,
de longa data, sequer tem a recomposição inflacionária anual, diminuindo-se
periodicamente os valores salariais batalhados com muita dificuldade. Como raro
exemplo, em 2003, foram editadas duas leis afetando a remuneração de servidores
públicos federais, abrangendo civis e militares dos poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, de autarquias e fundações públicas federais. Por meio
da Lei 10.697/2003, foi concedido o percentual de 1% a título de revisão geral
da remuneração. No mesmo dia, foi criada a Vantagem Pecuniária Individual
(VPI), de R$ 59,87, pela Lei 10.698/2003, concedida indistintamente a todo o
funcionalismo federal.
Ao instituir essa VPI em valor certo a todos servidores, a
Lei 10.698/2003 mascarou uma revisão geral, burlando a regra da igualdade de
índices. É que, com a concessão de R$ 59,87 a todos esses servidores, os que
ganhavam menos tiveram um impacto remuneratório maior, violando a identidade de
tratamento exigida constitucionalmente (Constituição Federal, artigo 37, inciso
X). A conversão desse valor sobre a proporção da menor remuneração do
funcionalismo resultava no percentual de 14,23%, que deveria ser o índice
efetivamente aplicado para todas as remunerações dos servidores federais.
Levada a discussão ao Poder Judiciário, o Tribunal Regional
Federal da 1ª Região, pioneiramente, decidiu em favor dos servidores que não
tiveram as suas remunerações revistas no percentual de 14,23%. Em seguida, o
Superior Tribunal de Justiça passou a adotar o mesmo entendimento, o que levou,
por exemplo, o Superior Tribunal Militar, o Conselho Nacional do Ministério
Público da União, o Ministério Público da União, o Conselho da Justiça Federal
e o Tribunal Superior do Trabalho a, administrativamente, concederem essa
revisão a seus servidores.
Já o Supremo Tribunal Federal tem apresentado uma posição
peculiar. Antes, quando a maioria dessas demandas não lograva êxito nas
instâncias inferiores, a corte suprema não julgava a matéria, pois entendia não
ser da sua competência. Agora, diante dessas concessões judiciais e
administrativas, a 2ª Turma do STF passou a suspender tais pagamentos,
invocando, preponderantemente, a sua Súmula Vinculante 37, que desencoraja
decisões judiciais que aumentem remuneração de servidores ao fundamento da
isonomia.
Todavia, esse cenário está longe de ser o definitivo, não só
porque não há pronunciamentos do Plenário ou da 1ª Turma do STF, mas,
principalmente, porque a corte ainda não se debruçou sobre a Súmula Vinculante
51, na qual se entendeu inconstitucional a diferença de índices de revisão
dados em 1993 ao funcionalismo federal em situação juridicamente idêntica ao
caso vertente (sendo favorável, portanto, à concessão da correção em 14,23% da
remuneração dos servidores federais).
Por coerência, no embate entre as súmulas vinculantes 37 e
51, o STF certamente decidirá em favor da última. Isso porque o enunciado da
Súmula Vinculante 37 busca impedir equiparações remuneratórias com fundamento
em isonomia ampla e genérica, sem maiores critérios (vedação que foi,
inclusive, reforçada pela reforma constitucional de 1998). Ao passo que a
revisão geral não se reduz à mera alegação de isonomia, pois a Constituição
Federal define um aspecto identitário com três requisitos específicos
(anualidade, generalidade e índices idênticos), afinal a desvalorização da
moeda é a mesma para todos os servidores.
Nota-se, portanto, que a isonomia ampla vedada na Súmula
Vinculante 37 (baseada na Constituição Federal, artigo 39, parágrafo 1º) é
diversa do cuidado com a identidade específica autorizada pela Súmula
Vinculante 51 (baseada na Constituição Federal, artigo 37, inciso X).
E a possibilidade jurídica da recomposição inflacionária em
14,23% combina com a realidade econômica, pois o Índice Nacional de Preços ao
Consumidor (INPC) mensurado no mês de janeiro de 2003, em relação aos 12 meses
antecedentes, indica o percentual de 16,3294% de inflação. Quando comparado ao
índice mensurado ao final de junho de 2003, constata-se o percentual de
19,6355%. Acaso tome-se como parâmetro a inflação anual acumulada no ano de
2002, constata-se o percentual de 14,74%.
Assim, não há como sustentar que o índice de 14,23% seria um
aumento de remuneração para esses servidores, pois sequer cobre a variação
inflacionária que, pela Constituição Federal, deveria o poder público
anualmente recompor. Se há rombo nas contas, seguramente é na dos servidores,
desde 2003.
Por Carlos Mário da Silva Velloso
Carlos Mário da Silva Velloso é professor emérito da UnB
(Universidade de Brasília) e da PUC-MG (Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais), foi presidente do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal
Superior Eleitoral. É autor do livro "Temas de Direito Público". é
advogado e ministro aposentado, ex-presidente do Supremo Tribunal Federal e do
Tribunal Superior Eleitoral. Professor emérito da Universidade de Brasília
(UnB) e da PUC Minas. Doutor honoris causa pela Universidade de Craiova,
Romênia.