BSPF - 18/03/2017
As questões que envolvem o direito de greve dos servidores
públicos são polêmicas e ganharam contornos mais graves com as recentes
paralisações de Polícias Militares no Espírito Santo.
Para tentar estabelecer uma regulamentação específica, o
presidente Michel Temer anunciou recentemente que o Governo Federal apoiará o
Projeto de Lei de autoria do Senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB/SP), a tramitar
no Congresso Nacional desde 2013, que estabelece extensos limites ao exercício
do direito de greve por parte dos servidores públicos, aí incluídos os
policiais civis, federais e rodoviários federais, bem como os servidores
lotados nas áreas de saúde, educação e segurança pública.
O direito de greve titularizado pelos servidores públicos,
com exclusão dos militares, está previsto na Constituição Federal, mas sua
regulamentação nunca foi implementada pela legislação ordinária. As condições
necessárias ao exercício de tal direito, bem como seus limites, vêm sendo
definidos pelo Poder Judiciário na análise de casos concretos.
O Projeto de Lei do Senado nº 710/2011, de autoria do
senador Aloysio Nunes, que pretende regulamentar o direito de greve dos
servidores públicos tem pontos polêmicos. Em síntese, o texto estabelece (i) o
conceito de greve no setor público , (ii) a definição dos requisitos
necessários para a deflagração da greve, bem como seus efeitos imediatos e as
garantias dos servidores grevistas, (iii) o rol das atividades tidas como
essenciais, para as quais o exercício do direito de greve pode ser limitado,
(iv) as penalidades aplicáveis aos servidores públicos em caso de greve
declarada abusiva e (v) o rito a ser observado pelo Poder Judiciário nas ações
judiciais relativas à greve no setor público.
O projeto mantém a proibição quanto à realização de greve
por parte dos servidores militares da União, bem como por parte dos Policiais
Militares e dos Bombeiros, permitindo-a, ao contrário, aos policiais civis,
federais e rodoviários federais, bem como aos integrantes das guardas civis
metropolitanas.
Nesses casos, todavia, as categorias e seus respectivos
sindicatos ficariam obrigados a manter um efetivo de, pelo menos, 60% de
servidores em atividade. Trata-se de um percentual extremamente alto e
desproporcional cuja imposição esvazia, na prática, o exercício efetivo do
direito fundamental de greve por parte das referidas categorias, de modo
incompatível com o próprio conceito de greve e com a Constituição Federal que o
consagrou em seus artigos 9º e 37, VII.
No que diz respeito aos militares da União - integrantes do
Exército, da Marinha e da Aeronáutica - e aos policiais e bombeiros militares
dos Estados, o projeto reafirma a proibição quanto ao exercício de greve já
constante da Constituição Federal.
Em que pese a proibição nesse sentido, não se pode ignorar
que a deflagração de greves no âmbito de tais categorias constitui, em verdade,
um fato que depende mais das condições de vida e de trabalho experimentadas por
esses profissionais em um determinado momento, do que da existência de
proibição legal em abstrato.
Assim, a questão seria melhor tratada pelo legislador se
acaso fossem assegurados aos militares, em geral, mecanismos a
possibilitar-lhes a provocação da administração pública com vistas à melhoria
de suas condições de vida e de trabalho, que se mostrassem compatíveis com os
princípios hierárquicos a pautarem as instituições.
É importante destacar, nesse particular, que, segundo o
Comitê de Liberdade Sindical da OIT, a proibição do direito de greve a
determinadas categorias de servidores públicos deve ser compensada com o
oferecimento, pelo Estado, de mecanismos alternativos de resolução de
conflitos, como, por exemplo, a criação de instâncias permanentes de diálogo
entre os representantes dos servidores e os gestores públicos.
Além dessa questão, o projeto traz algumas outras exigências
polêmicas, a saber:
- Exigências a serem cumpridas pelos servidores grevistas no
prazo de 15 dias entre a deflagração da greve e o início da paralisação. De
acordo com a proposição legislativa, os servidores deverão neste período seguir
os seguintes requisitos, sob pena de ilegalidade da greve:
a) Demonstração quanto à realização de negociação prévia com
a Administração Pública;
b) Comunicação à autoridade superior do órgão ou Poder
respectivo;
c) Apresentação de um “plano de continuidade dos serviços
públicos ou atividades estatais”;
d) Informação à população sobre a paralisação e as
reivindicações apresentadas ao Poder Público;
e) Apresentação de alternativas de atendimento ao público.
Algumas exigências mencionadas no projeto, em especial
aquelas pertinentes à elaboração de um “plano de continuidade dos serviços
públicos”, à “informação à população a respeito do movimento” e à “apresentação
de alternativas de atendimento ao público” no prazo de 15 dias pode representar,
em alguns casos concretos, a inviabilização em absoluto do direito à greve.
Certas atividades desempenhadas pelo Poder Público possuem
tamanho grau de complexidade que a implementação de tais medidas pelos
servidores grevistas e por seus sindicatos naquele exíguo prazo afigurar-se-á
consideravelmente difícil, senão impossível.
Além disso, a proposta, ao impor aos servidores grevistas e
aos seus sindicatos a elaboração de tais “planos” e “alternativas” de
atendimento à população, repassa aos referidos indivíduos e às suas entidades
representativas obrigações funcionais que incumbem ao Poder Público, e não a
terceiros, independentemente da existência ou não de movimento paredista
- Suspensão automática da remuneração correspondente aos
dias parados, limitando-se a compensação a 30% do período correspondente à
paralisação. A proposição cria, nesse particular, restrição que não só cerceia
de maneira desproporcional o exercício do direito fundamental à greve por parte
dos servidores públicos, como também acaba por criar potenciais prejuízos à
própria continuidade na prestação dos serviços públicos e, em última instância,
à própria população.
Ora, se a administração pública só poderá compensar 30% dos
dias parados, os sindicatos de servidores públicos não se sentirão motivados a
negociar a reposição desses dias quando do término da greve. Os servidores
sentir-se-ão, nesse caso, mais propensos a voltar ao serviço sem compensar os
dias parados, de modo a prejudicar – aí sim – a população.
Imagine-se a aplicação de tal dispositivo aos professores
das universidades públicas. Se seus sindicatos não puderem compensar a
totalidade dos dias parados, o calendário acadêmico seria retomado sem a
reposição das aulas perdidas e, ao fim, os alunos seriam amplamente
prejudicados.
- Aplicação da Lei de Improbidade Administrativa no caso de
compensação de dias parados superior ao período de 30% da paralisação. Vale
destacar que equiparar a compensação dos dias parados ao crime de improbidade
administrativa significa penalizar a própria população.
- Relação de atividades tidas como “essenciais – rol
exemplificativo. Segundo a redação do artigo 17 do projeto de lei, são
classificados como essenciais 21 atividades desempenhadas pela administração
pública, sem prejuízo de que outras venham a ser assim classificadas pelo Poder
Judiciário. Por serem atividades classificadas como “essenciais”, o PL
estabelece percentuais maiores de servidores em atividade no caso de
deflagração de greves.
A formulação de uma quantidade indiscriminada de atividades
essenciais tende a esvaziar o exercício do direito à greve, na medida em que o
restringe de maneira desproporcional.
Justamente a fim de evitar tal situação, o Comitê de
Liberdade Sindical da OIT vem reafirmando que só podem ser classificadas como
atividades essenciais para fins de limitação do exercício do direito à greve
aqueles serviços públicos exercidos por funcionários investidos do poder de
exercer autoridade em nome do Estado – por exemplo, juízes, auditores-fiscais e
diplomatas - ou aqueles cuja interrupção tem o potencial de ocasionar lesão à
vida, à saúde e à segurança da população. Apesar de tal enunciado, não é essa a
orientação seguida pelo PL ao definir, de maneira ampla, aberta e
indiscriminada, a relação das atividades essenciais.
- Exigência de percentual mínimo de 60% de servidores nas
atividades essenciais e 50% nas atividades não-essenciais. Os percentuais
exigidos pelo PL com vistas à manutenção das atividades desempenhadas pelos
servidores públicos esvaziam por completo o direito de greve.
Ora, se as categorias deverão manter contingentes a variarem
de 50% a 60% a depender da natureza da atividade, a pressão a ser exercida
sobre o Poder Público em decorrência da paralisação dos serviços (que configura
a essência do direito à greve) não surtirá qualquer efeito.
Ou seja, a figura da greve no serviço público passará a
existir não mais como um efetivo direito fundamental, mas sim como uma mera
formalidade sem qualquer possibilidade fática de atingir seus objetivos
institucionais.
Nesse particular o Comitê de Liberdade Sindical da OIT deixa
claro que a imposição de um número mínimo de trabalhadores em atividade não
pode ser extensa a ponto de inviabilizar o exercício do direito à greve. O PL,
nesse ponto específico, faz exatamente o contrário do que orienta a OIT.
Portanto, é necessário que os parlamentares sejam
extremamente cautelosos na análise do tema, para não transformarem em letra
morte o direito fundamental de greve, cuja previsão constitucional, antes de
configurar uma dádiva do legislador, foi resultado de intensa luta por parte
dos servidores públicos e de suas associações de classe.
Por Paulo Roberto Lemgruber Ebert
Paulo Roberto Lemgruber Ebert é advogado do escritório
Roberto Caldas, Mauro Menezes & Advogados e Doutor em Direito do Trabalho
pela Universidade de São Paulo – USP