BSPF - 21/04/2017
Repousa silenciosamente na Câmara dos Deputados o Projeto de
Lei 6.726/2016 que regulamenta o limite remuneratório de servidores públicos
municipais, estaduais e federais. Oriundo do Senado Federal, a proposta trata
de uma nobre missão. No entanto, pela importância e delicadeza nas relações
travadas entre Estado e servidor/agente/membro, o debate deveria ser ampliado,
até para que o mesmo seja, de fato, fruto da vontade popular.
Nessa necessidade de melhor avaliação está o trecho que tem
por objetivo dar a resposta legal ao conceito de rendimento, para fins de
aplicação do teto remuneratório. Nesse ponto, o projeto não andou bem, em
especial quanto ao dispositivo que trata da licença-prêmio convertida em
pecúnia em razão da não fruição na atividade, agora considerada como
rendimento, em descompasso com o seu caráter verdadeiramente indenizatório.
Para que essa premissa se torne verossímil, é necessário
fazer a reconstituição histórica do direito à licença-prêmio e a sua situação
atual. Pelo Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos Federais, a
implementação do direito se dava após cada quinquênio ininterrupto de
exercício, com a concessão de três meses de licença por assiduidade, com a
remuneração do cargo efetivo e, no caso de falecimento de servidores, os
valores eram convertidos para beneficiários da pensão.
A lei era silente sobre diversos pontos que se revelam
importantes para a controvérsia que ora se verifica: a licença é direito
subjetivo, oponível à Administração a qualquer tempo ou somente pode ser gozada
de acordo com a conveniência? O seu caráter, quando convertido, é indenizatório
ou remuneratório? Quais as hipóteses de conversão? Apenas em caso de morte? Ou
a aposentadoria gera direito à conversão?
Diante de tais omissões, coube à jurisprudência dos
tribunais pacificar o entendimento acerca do reconhecimento do caráter
indenizatório, de acordo com a sua intrínseca relação com o enriquecimento sem
causa, uma vez que afastar o direito à conversão significa concluir que a
Administração fez uso das atividades do seu servidor e não o remunera quando de
sua saída para a inatividade, atribuindo, para si, aquele valor, o que é vedado
pela legislação civil.
Entretanto, em 1997, por força da Lei 9.527, a
licença-prêmio, no âmbito federal foi substituída pela licença para
capacitação. Com efeito, por força do direito adquirido, os que alcançaram tal
direito deveriam receber tais valores, com a efetiva conversão, no momento de
aposentadoria.
O próprio STJ já afirmou a hipótese de conversão por
necessidade do serviço e não apenas por morte, a ensejar a conclusão de que a
licença não gozada, quando da inatividade, deve ser convertida, mantendo-se o
seu caráter indenizatório, de modo a não incidir tributação por acréscimo
remuneratório e nem o teto do artigo 37 da Constituição Federal.
Especificamente no Distrito Federal, vigorou até dezembro de
2011 o texto original da Lei 8.112/90. Era o que determinava a dicção do artigo
5º da Lei Distrital nº 197/1991. Dessa forma, a análise acima contempla o
direito adquirido dos servidores distritais até a edição de seu regime jurídico
próprio, ocorrida em 2011, que não só manteve o direito à licença-prêmio, como
declarou expressamente o seu caráter indenizatório, garantindo aos servidores
estaduais o direito à licença-prêmio, bem como à conversão dos períodos não
gozados. E a lei de regência declarou, de forma expressa, o seu caráter
indenizatório, após hígido processo legislativo.
Voltando ao projeto de lei que repousa na Câmara, sua
redação original continha proposição que limitava a quantidade de meses
reconhecidamente indenizatórios. Tal dispositivo já estava eivado de vícios.
Observe-se que o processo legislativo deve se pautar pelos
princípios que orientam à Administração Pública. Isso é consequência lógica da
atuação parlamentar, que não pode se afastar das regras gerais. Não é possível
validar um dispositivo que, sem indicar qualquer fundamento razoável, indica
que a licença-prêmio convertida tem caráter indenizatório limitado, tão
somente, ao período de seis meses.
A coisa ficou ainda pior quando, em sede emenda do senador
José Aníbal (PSDB/SP), que fora aprovada por unanimidade, o caráter
indenizatório da licença-prêmio foi afastado. Com isso, o texto do projeto
incluiu, como parcela remuneratória, a licença-prêmio, convertida em pecúnia,
sob a justificativa desarrazoada que se trata de forma indireta de remuneração,
afastando decisões judiciais consolidadas, que reconhecem o caráter
indenizatório da licença-prêmio, bem como afasta dispositivo de lei em vigor,
com motivação absurda.
O projeto atual, além de ser incompatível com a legislação
em vigor, encerrará na institucionalização, por via legal, do enriquecimento
sem causa da Administração, porquanto deterá a parte do somatório de períodos
de licença não gozada que extrapole o teto remuneratório local, mesmo possuindo
notório caráter indenizatório.
Tal regulamentação não pode ser feita com base em
suposições. O caráter indenizatório da licença-prêmio convertida é de clareza
solar. Afastá-lo, sob o clamor popular de combate aos supersalários, evidencia
a atuação casuística dos parlamentares, sob justificativa risível de forma
indireta de remuneração.
A remuneração possui nítida ligação com o serviço prestado e
a sua contraprestação. A licença-prêmio por assiduidade “premia” o servidor, e
não por outra razão tem esse nome, a perceber a remuneração sem a necessidade
de comparecer ao serviço para prestar atividade. Caso seja obrigado a
comparecer e prestar os serviços, por qualquer razão, é certo que receberá a
sua remuneração.
O caráter indenizatório se revela justamente na medida em
que a Administração, independentemente da motivação, não prescinde das
atividades desenvolvidas pelo servidor e, ao final de sua carreira, o indeniza
por isso, já que o direito não é subjetivo e oponível a qualquer tempo.
Desnaturar esse caráter significa, a não mais poder, a institucionalização,
pasme-se, por via legal, do enriquecimento sem causa.
É óbvio que a sociedade clama por critérios específicos para
a aplicação do teto. Mas, se for para despertar no sentido de afastar direitos
claros, sob argumentos juridicamente insustentáveis, melhor que o projeto
repouse mais, a ponto de amadurecer o debate. Caso contrário, muitos servidores
serão prejudicados, porquanto por um passe de mágica, aquilo que era
indenização deixará de ser, a ensejar o enriquecimento estatal às custas do
trabalho de seu servidor.
Por Adovaldo Dias de Medeiros Filho
Adovaldo Dias de Medeiros Filho é advogado integrante do
Grupo de Pesquisa de Servidores Públicos e sócio do escritório Roberto Caldas,
Mauro Menezes & Advogados.
Fonte: O Estado de S. Paulo