BSPF - 23/09/2017
A fatura dos benefícios diretos e indiretos que o governo
concede a parlamentares, servidores e funcionários com cargos comissionados
para cobrir suas despesas com habitação é uma conta salgada e difícil de ser
acompanhada. Só com auxílio-moradia, os gastos passam de R$ 1 bilhão. No caso
dos imóveis oficiais, que não têm uma rubrica específica no Orçamento, eles vão
além da manutenção dos apartamentos e passam por liminares contestadas no STF e
inquilinos indesejados que o governo tenta despejar.
Em 2016, os Três Poderes gastaram R$ 1,145 bilhão com
auxílio-moradia, segundo cálculo feito para a BBC Brasil pela organização
Contas Abertas, de monitoramento de dinheiro público. De janeiro a agosto de
2017, foram R$ 744 milhões, contra R$ 500 milhões no mesmo período em 2015 (em
valores correntes, ou seja, sem atualizar pela inflação).
Esses R$ 1,145 bilhão seriam suficientes para custear,
durante um ano, por exemplo, o bolsa-aluguel de 238,5 mil famílias de baixa
renda em São Paulo, cidade com o maior déficit habitacional do país.
No caso dos imóveis funcionais, é difícil contabilizar
quanto a União gasta com isso, já que esses dados não estão agregados no
Orçamento. O que há são empenhos esporádicos de recursos. A Câmara, por
exemplo, separou em junho R$ 2,5 milhões para gastar com a limpeza e a portaria
de seus apartamentos funcionais, identificou o Contas Abertas.
Além do debate sobre o reequilíbrio das contas públicas,
cada vez mais premente diante de quatro anos consecutivos de déficit do
governo, esse tema ganhou destaque em agosto, quando o blog da jornalista da
Globonews Andreia Sadi revelou que a assessora da primeira-dama Marcela Temer,
Cintia Borba, responsável por supervisionar a rouparia e a limpeza do Palácio
do Jaburu, passou na frente de outros servidores e conseguiu um apartamento
custeado pelo Estado na capital federal.
O governo respondeu que a assessora da primeira-dama cumpriu
os pré-requisitos para ocupar o apartamento funcional: tem cargo comissionado
de alto nível e não é proprietária de imóvel em Brasília, entre outros.
Borba ocupa, assim, um dos 76 imóveis residenciais da
Secretaria de Administração da Presidência da República, cedidos
preferencialmente a ministros e, em seguida, a servidores em cargos de
"natureza especial" e comissionados.
Quem mais, em Brasília, tem direito ao benefício de imóveis
funcionais ou auxílio-aluguel? A lista é longa - inclui membros do Legislativo,
do Executivo e do Judiciário.
A seguir, a BBC Brasil explica como esse sistema funciona:
Governo tenta despejar, mas não consegue
No âmbito do governo federal, a Secretaria do Patrimônio da
União (SPU), do Ministério do Planejamento, administra outros 544 imóveis,
ocupados por ministros e servidores de ministérios, agências governamentais, da
Advocacia-Geral da União e da própria Presidência. Cabe aos ocupantes pagar
condomínio e taxas como água e luz.
Cada apartamento custa R$ 12 mil por ano ao governo em
manutenção, segundo a SPU, e 230 deles estão desocupados.
Para reduzir as despesas, a secretaria colocou à venda neste
ano 24 apartamentos e uma casa na capital federal, que renderam R$ 15,7 milhões
à União. Um segundo leilão é previsto para este mês.
Há outros 525 imóveis sob o controle do Itamaraty e 362 sob
o Ministério da Defesa, ocupados, por exemplo, por diplomatas, oficiais de
Chancelaria e integrantes das Forças Armadas.
Acontece que eles são obrigados, por lei, a desocupar o
imóvel em 30 dias caso sejam exonerados, licenciados ou aposentados do serviço
público, mas isso nem sempre acontece.
A Advocacia-Geral da União informa que correm na Justiça
centenas de ações de reintegração de posse de imóveis funcionais - tentativas
do governo de recuperar imóveis que considera ocupados ilegalmente. Cerca de
120 desses casos estão pendentes, aguardando decisão judicial.
"Os réus invocam argumentos emocionais, dizendo 'não
tenho para onde ir', ou alegam que vão ocupar outra função pública no futuro, e
há os filhos que ocupam o imóvel de pais falecidos, ex-servidores",
explica à BBC Brasil a advogada da União Ludmila Tito Fudoli.
A União costuma pedir, além da liberação do imóvel, uma
indenização pela ocupação irregular, mas muitas ações do tipo se arrastam na
Justiça.
"É um total descaso com a sociedade. Algumas pessoas
ficam anos (irregularmente) nesses imóveis, enquanto há uma fila de servidores
aguardando apartamentos vagos e forçando a União a pagar auxílio-moradia",
diz Tito Fudoli. "E muitos deixam prejuízo, devendo milhares de reais em
taxa de condomínio, por exemplo."
Entre os casos em tramitação na Justiça estão, por exemplo,
o de um servidor público morto em 1994, cujos parentes continuam morando no
imóvel mesmo após a Justiça determinar a reintegração de posse; o de uma
servidora acusada de ocupar irregularmente um imóvel por 17 anos, resultando em
um pedido de indenização de R$ 1,2 milhão pela AGU; e o de um ex-funcionário do
Senado que foi condenado a pagar R$ 80 mil à União por taxas de condomínio
devidas durante sete anos de ocupação irregular de um apartamento. Em decisão
inédita, a Justiça determinou que o valor seja descontado da aposentadoria do
ex-servidor.
Juízes federais também têm direito
A possibilidade de morar às custas do contribuinte também se
estende a milhares de membros do Judiciário, na forma de um bilionário
auxílio-moradia que se sustenta por uma liminar de 2014.
A decisão provisória, assinada pelo ministro Luiz Fux, do
Supremo Tribunal Federal, determinou um auxílio-moradia de R$ 4.377 a todos os
juízes federais em atividade no país, decisão que, por simetria, se estendeu a
membros do Ministério Público e dos Tribunais de Contas - inclusive os que têm
residência própria em Brasília.
Estima-se que em torno de 17 mil magistrados e 13 mil
procuradores tenham direito ao benefício.
Críticos viram na medida uma forma do Judiciário elevar
salários num momento de congelamento do orçamento. O Contas Abertas estima que
o custo da liminar, de 2014 até hoje, possa chegar a R$ 4,5 bilhões.
"Chega a ser uma afronta à população de um país onde,
entre tantos outros infortúnios, o piso salarial do professor é metade do
benefício pago aos magistrados: R$ 2.297", diz uma carta aberta do Contas
Abertas à ministra Carmen Lúcia, presidente do STF, para pressionar a Corte a
votar o tema em definitivo.
"O valor vem sendo pago mesmo para quem mora na mesma
cidade onde trabalha e, até mesmo, para quem tem residência própria",
queixa-se a Contas Abertas.
A Associação Nacional dos Servidores do Ministério Público
(Ansemp), que também questionou os pagamentos, afirmou que, por conta da
liminar, os gastos com auxílio moradia do MP do Ceará, por exemplo, passaram de
R$ 2,7 milhões em 2013 para R$ 23,4 milhões em 2016.
Senadores recebem R$5,5 mil por mês para custear casa
Deputados e senadores também têm, entre os benefícios do
cargo, o direito a apartamento funcional ou, na ausência deste, a auxílio
moradia.
O Senado tem, segundo sua assessoria de imprensa, 72
apartamentos funcionais na Asa Sul (área nobre de Brasília) e uma casa para seu
presidente.
"Desses imóveis, 51 estão ocupados por senadores e
três, por deputados federais. Outros 18 estão em uso por não parlamentares
(ministros de Estado, do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal de Contas da
União e desembargadores do Tribunal Regional Federal)", informa a
assessoria, que diz que a despesa mensal por imóvel ocupado é de R$ 3,8 mil.
O auxílio-moradia, pago atualmente a cerca de 15 senadores
que não usam imóvel funcional, é de R$ 5,5 mil por mês.
Em 2016, o Senado diz ter gasto R$ 1,2 milhão com essa
despesa, mas esclarece que não há como calcular o quanto foi gasto total com
imóveis funcionais, porque "não há sistema de custos implantado que
permita evidenciar a parcela referente especificamente a eles, tampouco há
metodologia definida para realizar o rateio dessas despesas".
A Câmara, por sua vez, possui 432 apartamentos, 345 deles
ocupados por deputados atualmente.
Muitos estavam bastante degradados até uma longa reforma -
que durou cerca de dez anos - ter restaurado de caixas d'água até esquadrias em
216 deles, a um custo médio de R$ 600 mil cada (cerca de R$ 129 milhões no
total). Uma outra parte aguarda nova reforma, ainda sem data para ocorrer.
Quando o apartamento muda de mãos (um deputado sai e outro entra), também costuma-se trocar utensílios e móveis, e os velhos vão para um depósito para depois serem leiloados.
Quando o apartamento muda de mãos (um deputado sai e outro entra), também costuma-se trocar utensílios e móveis, e os velhos vão para um depósito para depois serem leiloados.
"Agora, 100% desses imóveis reformados estão ocupados
(por deputados), o que mostra que a reforma cumpriu seu objetivo", explica
à BBC Brasil Carlos Laranjeiras, assessor técnico da 4ª Secretaria da Câmara,
acrescentando que o custo dos imóveis funcionais - estimado em R$ 3,4 mil
mensais por deputado - é menos oneroso do que o gasto da Câmara com auxílio
moradia (de R$ 4,2 mil por parlamentar por mês).
Faz sentido pagar casa para servidores?
"Há quem vislumbre que acabar com os apartamentos
funcionais liberaria energia da máquina pública (que não precisaria mais
administrar os imóveis), mas eu acho que vale a pena. Um dos problemas (com o
fim dos imóveis) seria a transição: desfazer-se dos apartamentos envolveria
negociação entre os parlamentares e com a Secretaria de Patrimônio da União, o
que pode ser um processo longo e oneroso à administração pública. Poderia levar
anos", argumenta Laranjeiras.
Já Gil Castelo Branco, secretário-geral da Contas Abertas,
acha que os apartamentos funcionais de todos os Poderes perderam o sentido.
"Não é papel do Estado atuar como imobiliária, e ele
faz isso (de modo) muito malfeito. Muitos deputados preferem ficar em flats com
o auxílio-moradia. E você acha que o deputado (que usa apartamento funcional)
fica com a geladeira e o fogão velho do ocupante anterior? Troca-se a cada
ocupante. O gasto com isso não é papel do Estado", defende. "Não é
algo que vai cobrir o rombo do Orçamento - não fará nem cócegas. Mas é uma
questão de princípios."
Muitos defendem que sequer o auxílio-moradia seja devido.
Uma proposta popular pedindo o fim do benefício a deputados, senadores e juízes
recebeu o apoio de 253 mil cidadãos e foi transformada em sugestão de projeto
de lei, atualmente aguardando a designação de um relator na Comissão de
Direitos Humanos do Senado.
"Se o fim do auxílio-moradia para deputados, senadores
e juízes for aprovado, estaremos dando início à moralização na utilização dos
recursos provenientes dos impostos pagos pelo povo. Um país mais justo,
igualitário e sem privilégios", diz a proposição.
Por Paula Adamo Idoeta
Fonte: BBC Brasil