terça-feira, 26 de março de 2013

Crédito consignado é alvo de indústria de liminares


Maíra Magro
Valor Econômico     -     26/03/2013




Brasília - A atendente em Porto Alegre oferece, por telefone, uma proposta que está disparando a inadimplência do mercado de crédito consignado no Brasil. "Se você ganha R$ 2 mil, consigo suspender o desconto do empréstimo atual na folha de pagamento e depositar na sua conta R$ 12 mil líquidos."

A promessa do dinheiro fácil envolve uma indústria de liminares que usa o Judiciário para dar um calote nos bancos, em um esquema que já se espalhou por pelo menos sete Estados, em diferentes regiões do país. Os alvos são convênios de empréstimo consignado entre bancos com órgãos pagadores do setor público, como a Marinha, a Aeronáutica, o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), governos estaduais e prefeituras.

"Primeiro, a gente entra na Justiça questionando a validade do contrato [de consignado] ou juros abusivos", explica a atendente na capital gaúcha. "No momento em que o juiz dá a assinatura dele, a margem é aberta e o dinheiro fica disponível. A ação acaba indo para juízes melhores, que a gente sabe que vão liberar. A chance de ganhar a causa é de 95%. Se não ganhar, a gente não desconta nada, fica tudo por nossa conta."

A fraude começa com uma ação judicial, apresentada com a suposta intenção de questionar os juros cobrados pelo banco ou a validade do próprio contrato. Alguns clientes alegam que nunca tomaram nenhum empréstimo, ou que não receberam do banco uma cópia dos documentos.

Nessa ação, os advogados pedem uma liminar com duas determinações: suspender o desconto das parcelas da dívida na folha de pagamento e, além disso, desbloquear a chamada "margem consignável" - o percentual máximo do salário ou benefício, em geral de 30%, que pode ser destinado ao pagamento do empréstimo.

Com a liminar concedida, o desconto é suspenso e o contracheque fica "limpo" para fazer novas dívidas. "A liminar funciona como um cheque em branco para tomar novos empréstimos", diz o advogado Djalma Silva Júnior, que representa diversas instituições financeiras em processos envolvendo fraudes com empréstimo consignado.

Imediatamente, um novo empréstimo é tomado em outro banco, no que já se tornou conhecido como "ciranda do consignado". Silva Júnior identificou um caso em que a artimanha foi reproduzida nove vezes em nome de um mesmo cliente, contra pelo menos oito bancos.

"Eles tomam um novo empréstimo, mas sequer aparecem na audiência de conciliação", conta o advogado. As liminares são concedidas antes mesmo da audiência e sem ouvir as instituições financeiras envolvidas. "Quando o banco toma ciência do processo, os descontos já saíram da folha de pagamento."

Com o novo empréstimo formalizado e o dinheiro em conta, o cliente desiste da ação judicial. O objetivo da ação, na verdade, não era questionar os juros ou a validade do contrato, mas sim conseguir a liminar e liberar a folha para novos empréstimos.

O esquema só é possível graças à certeza de que o débito anterior nunca será pago, ou pelo menos cairá pela metade ao longo do tempo, já que o banco se vê forçado a renegociar os valores. Com 30% do contracheque tomados pelo novo contrato, a instituição que concedeu o primeiro empréstimo não consegue mais cobrar a dívida, pois se vê impedida de fazer as deduções na folha.

O Valor apurou que cerca de 20 instituições financeiras grandes, médias e pequenas já sofreram prejuízos milionários com liminares concedidas em pelo menos sete Estados: Ceará, Maranhão, Paraíba, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Rio Grande do Sul. As decisões beneficiam moradores de outras regiões, como São Paulo.

A atendente de Porto Alegre explica que trabalha "com todos os bancos": "Panamericano, Bradesco, Banrisul... Nós vemos o que está pagando melhor na semana. O cliente não precisa nem ir, a gente só precisa da assinatura."

Questionada se a primeira dívida será perdoada, ela admite que haverá cobrança, mas aconselha o interessado a "enrolar" o banco: "O que tem que fazer é negar, negar, negar [o pagamento], e quando passarem cinco anos, renegociar, porque o banco vai dizer que é melhor receber menos dinheiro que o cliente não pagar mais. Mas eles não podem entrar na folha duas vezes, isso seria um crime, algo fora da lei."

Algumas vezes, porém, o cliente é ludibriado com uma oferta enganosa de "cancelamento do consignado", "exclusão" ou "compra de dívida". No Rio de Janeiro, um militar da aeronáutica aposentado, de 50 anos, conta que recorreu ao serviço por indicação de um amigo, pois tinha débito em três instituições financeiras.

De acordo com ele, a operação foi feita em um pequeno escritório no centro do Rio de Janeiro, como se fosse um serviço de "compra de dívida". "O que mais tem no centro do Rio são lojas oferecendo isso. Todo mundo está fazendo, para baixar o valor da prestação descontada em folha." Ele diz, porém, que não sabia que seu nome foi parar em um processo judicial no 6º Juizado Especial de Fortaleza, no bairro de Messejana, onde a juíza titular concedeu uma liminar para suspender os descontos de empréstimos antigos e liberar a folha para novos empréstimos.

Procurada pelo Valor, a Associação Brasileira de Bancos (ABBC) confirmou a fraude e identificou mais de 28 mil processos desse tipo em diferentes comarcas do país. "Há uma quadrilha por trás disso, uma ou várias", diz o presidente da ABBC, Renato Oliva, que comanda o banco Cacique, um dos afetados pelo problema.

A ABBC não soube estimar o tamanho do prejuízo. Mas somente em duas comarcas da Paraíba, liminares envolvendo um convênio da Marinha significaram R$ 18 milhões em contratos suspensos. "Por causa de situações como essa, algumas instituições financeiras reduziram a oferta ou resolveram não mais oferecer a modalidade de empréstimo no país", afirma Oliva.

De acordo com ele, nos convênios da Aeronáutica e da Marinha, a fraude pode estar comprometendo cerca de 15% da inadimplência do consignado. A margem geral de inadimplência desse tipo de empréstimo no país é baixa em relação a outras modalidades de crédito e gira em torno de 4 a 5%. Segundo Oliva, cerca de 0,8% está vinculado a esse tipo de fraude.

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