A queda dos juros reduz a dívida sem que o governo sue a camisa. A tentação de gastar fica quase irresistível
Analistas de mercado começaram a temer algo impensável há três anos: o aumento dos gastos públicos, a queda na arrecadação e a vontade de fazer da ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, a próxima presidente da República podem fazer o superávit primário virar pó em 2010. Considerado sagrado de 1999 a 2006, o saldo positivo na execução do orçamento começou a ser enfraquecido em 2007, quando a equipe econômica reduziu a meta de 4,25% do Produto Interno Bruto (PIB) para 3,8%, usando como pretexto uma mudança na metodologia de cálculo das riquezas produzidas no país.
A tal política anticíclica adotada para tentar minimizar os efeitos da crise internacional e animar a economia consistiu em aumento de despesas correntes e corte de impostos. Para implantá-la, o governo reduziu ainda mais o objetivo para 2,5% do PIB, com autorização para cair a 1,56%, caso toda a previsão de despesas com as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) seja cumprida. Dez meses seguidos de queda na arrecadação também prejudicaram o esforço fiscal. De janeiro a agosto, o recolhimento de impostos federais ficou R$ 11,45 bilhões menor.
Usado para abater os juros sobre a dívida pública, o superávit primário está na raiz da estabilização brasileira. Ele traz tranquilidade para os investidores de que o país vai honrar seus compromissos internos e externos. A austeridade permitiu a queda do endividamento líquido de 52,4% do PIB em 2003 para 36% em 2008. Com a crise, ele voltou a subir para 44%. O temor agora é de que o governo relaxe de vez e ponha a perder os ganhos do passado. A queda dos juros de 13,75% para 8,75% permite a redução dos débitos sem que o governo sue a camisa. A tentação de gastar fica quase irresistível. Na semana que passou, Banco Central e Ministério da Fazenda entraram em atrito por causa do desempenho fiscal.
Capital político O comportamento fiscal do governo já não vem bem. O superávit, que já foi de 4,35% do PIB em 2005, está agora em apenas 1,59%. Após o arrocho para angariar credibilidade no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Tesouro Nacional e o Ministério doPlanejamento foram gradativamente afrouxando os nós e abrindo as torneiras. A administração federal voltou a conceder aumentos generosos ao funcionalismo e a contratar muito. Nem o fim da CPMF nem a crise contiveram os ímpetos expansionistas. A previsão de contratação em 2008 e 2009 é de 59 mil pessoas. As despesas com a folha já subiram 19,2% no acumulado até agosto, consumindo R$ 15,8 bilhões a mais.
Um importante técnico da área econômica admite que há assuntos estruturais a resolver, como uma limitação do crescimento real da folha de pagamentos e a problemática Previdência Social, que carrega um deficit de R$ 29,6 bilhões até agosto, numa expansão de R$ 5,2 bilhões. Mas ele garante que a conjuntura não embute nenhum risco de descontrole. “Vai demorar mais tempo do que se esperava para que as coisas se normalizem na área fiscal depois da crise, mas o aumento atual de gastos não coloca a consistência da política em xeque. Não é nada que desestabilize as contas públicas”, diz.
Na avaliação do técnico, só o governo Lula, que recompôs os salários do funcionalismo até 2010, tem credibilidade para enfrentar uma briga com os sindicatos e adotar a limitação da folha. O projeto enviado ao Congresso previa uma elevação máxima de 1,5% acima da inflação para o valor anual, mas uma negociação no Senado já elevou o teto para 2,5%, número ainda considerado razoável. “Nunca os servidores ganharam tão bem. As categorias podem até querer mais aumentos, mas o governo tem capital político para enfrentar a briga. A área econômica quer a aprovação do projeto o quanto antes”, diz.
Fogo amigo Nos cálculos do técnico, se a economia crescer 5% em média nos próximos 10 anos, a limitação permitirá uma queda das despesas com a folha de 5,1% do PIB para 4%. Na Previdência, o problema emergencial está no fogo amigo do senador Paulo Paim (PT-RS), que apresentou projetos de lei acabando com o fator previdenciário e garantindo o aumento dos benefícios pelo índice do salário mínimo desde 2006. Só o retroativo custaria ao Tesouro R$ 36 bilhões. A equipe econômica não quer nem ouvir menção ao fim do fator previdenciário, mecanismo que adia um pouco a aposentadoria dos trabalhadores e alivia as contas.
Nos tempos de comportamento fiscal mais rigoroso, o governo Lula tinha o plano de chegar ao deficit nominal zero até 2010. Esse conceito mede o resultado final das contas públicas, depois de incorporada a montanha de juros no cálculo. O buraco já foi de 4,6% do PIB em 2003, despencou para 1,5% em 2008 e está em 3,5%. Com esse valor diminuído a zero, a dívida pública passaria a cair de forma mais acentuada. O ministro da Fazenda, Guido Mantega, tinha esse objetivo. Mas os analistas acreditam que ele foi atropelado pelas necessidades políticas do governo e temem que o superávit primário seja desidratado a ponto de sumir. O sonho dourado se transformaria num pesadelo sombrio.
O técnico, porém, assegura que a meta de superávit primário voltará a 3,3% no ano que vem, podendo baixar a 2,15% caso as verbas do PAC sejam todas utilizadas e o governo aproveite 0,5% do PIB para formar o fundo soberano. Ele não acredita nem em uma coisa, nem em outra. “O presidente Lula tem a melhor cabeça econômica do governo. Ele entende a necessidade do superávit primário e é o maior fiador dessa política. O presidente e o ministro Mantega não querem ver o primário baixando a zero. Quem estiver apostando no contrário vai se surpreender”, diz. |