*Carlos Fernando Mathias de Souza
CORREIO BRAZILIENSE - 11/07/2011
PONTO FINAL
O STF aprovou em 25 de junho de 2009 a súmula vinculante de nº 16 , cujo projeto inicial tinha a seguinte redação: ‘Os artigos 7º, IV e 39 § 3º (redação da EC 19/98) referem-se ao XXX remuneração percebida pelo servidor”. Por oportuno, transcreve-se, desde logo, o teor dos textos da Constituição, contidos na Súmula, isto é o art. 7º, com seu inciso IV, e o art. 39, § 3º. Diz o caput do art. 7º: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros, que visem à melhoria de sua condição: (...) IV — salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.”
E a cabeça do art. 39 da Constituição é expressa: “A União, os estados, o Distrito Federal e os municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes.” O § 3º do artigo, diz: “Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir.”
Em apertada síntese, a questão que a súmula tem por escopo pacificar, refere-se à inteligência do art. 7º, IV da Carta, quando aplicada à remuneração de servidores públicos. Recorde-se que precedentes do Supremo assentaram entendimento de que a disposição em destaque (isto é, o art. 7º, IV da CF) refere-se ao total da remuneração recebida pelo servidor e não apenas ao vencimento-base.
Bastante ilustrativos, sobre o particular, são as decisões nos recursos extraordinários nºs 199.098/SC e 265.129/RS, em que foi relator o ministro Ilmar Galvão. Da ementa do primeiro acórdão referido, extrai-se o seguinte trecho: “O dispositivo da Constituição do Estado de Santa Catarina que garante aos servidores civis piso de vencimentos nunca inferior ao salário mínimo deve ser interpretado como referido à remuneração do servidor”.
Já com relação ao segundo decisum (o RE 265.129/RS), onde, naturalmente, a tese nuclear foi agitada, parece importante anotar a seguinte parte da ementa: “A decisão recorrida, ao reconhecer ao servidor civil estadual direito a vencimento básico nunca inferior ao salário mínimo, com base no art. 29, inciso I da Constituição do Estado (do Rio Grande do Sul, obviamente), contrariou orientação desta Corte de que a garantia do salário mínimo, prevista no art. 7º, inciso IV, da Constituição Federal, sendo de aplicação obrigatória aos servidores civis, por força do art. 39, § 2º (redação original) da mesma Carta deve ser entendida, neste caso, como alusiva ao total dos vencimentos, incorrendo em inconstitucionalidade material o dispositivo na Constituição estadual que vincula tal garantia ao vencimento básico”.
Registre-se que o STF, em tal julgamento, conheceu e deu provimento ao recurso extraordinário, declarando, incidenter tantum, inconstitucional o inciso I, art. 29, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul e, ipso facto, reformou o acórdão a quo que teve por fundamento. Na realidade, com apoio em tal entendimento, consolidou-se a orientação das turmas da Corte e de seu Plenário.
Em resumo, corroborou-se a inteligência de que a remuneração total do servidor, e não o seu salário-base, é que não pode ser inferior ao salário mínimo. Recorde-se, por outra parte, ainda à guisa de ilustração, o acórdão no julgamento da repercussão geral por questão de ordem em Recurso Extraordinário, em que foi relator o ministro Ricardo Lewandowski.
De passagem, anote-se que a demonstração da repercussão geral, como pré-requisito para a admissão de recurso extraordinário, estreou no ordenamento positivo brasileiro com a EC nº 45/2004 (§ 3º e do inciso III do art. 102 da CF). Quando do julgamento do RE 582.019-0-São Paulo, o relator, ministro Lewandowski, submeteu, preliminarmente, à apreciação do Plenário do Supremo, questão de ordem, no sentido de conferir à matéria a adoção dos procedimentos de questões de ordens anteriores (que apontou) e que em apertado resumo, devesse trazer, por consequência, a denegação da distribuição de recursos versando sobre o mesmo tema.
Eis o acórdão da decisão, placitada de modo unânime: “1) — reconhecer a existência de repercussão geral; 2) — reafirmar sua jurisprudência no sentido de que a garantia do salário mínimo, a que se referem os artigos 7º, IV, e 39, § 3º, da Constituição Federal, corresponde ao total da remuneração percebida pelo servidor; 3) — dar provimento ao recurso; e 4) — autorizar a devolução dos autos dos demais recursos sobre o tema, para os fins do artigo 543-B do Código de Processo Civil (...)”
Na discussão sobre a súmula, de início, o ministro Carlos Britto adiantou que votaria contra ela, vez que se tratava da questão do piso salarial, que não era o salário mínimo, mas a somatória de toda remuneração. Em seguida, o ministro Marco Aurélio, que sempre se posicionou em linha semelhante à do ministro C. Britto, teve intervenção que, praticamente, fez desaparecer a divergência. Foi textual, no particular: “Penso ser o tema um pouco diferente: saber se a garantia de percepção do salário mínimo diz respeito, por exemplo, apenas ao básico ou se diz respeito à totalidade da remuneração. Então a conclusão é pacífica: diz respeito à totalidade. É garantia mínima de percepção presente a relação jurídica.”
Para que melhor se compreenda o ponto em destaque, impõe-se recordar que os dois ministros que estrearam a discussão nunca aceitaram que o cálculo de determinadas vantagens de servidores não tivesse o salário mínimo como base (ao contrário da posição majoritária da Corte, que sempre entendeu (a teor do disposto no art. 7º, IV, in fine) ser vedada a vinculação do salário mínimo para qualquer outro fim).
A tese agasalhada na Súmula 16 (atente-se, aqui, que não se trata de uma sutileza) é outra, vale dizer a da consagração da percepção de salário mínimo, como garantia, também, dos servidores públicos, como estabelecido no art. 39, § 3º, da Constituição. Sob tal óptica, entende-se a modificação do posicionamento do ministro Carlos Britto (que inauguraria a divergência), que fez consignar, em suas intervenções, após esclarecer-se que se tratava apenas da questão da garantia em destaque: “Quando nós discutimos isso, eu apenas questionei o uso da palavra remuneração, à luz da Constituição, já que é totalidade (...) o vencimento mais os acréscimos e mais as parcelas percebidos pelo servidor. O total é que se chama remuneração.” E, mais adiante, sugeriu que “talvez pudéssemos contornar essa dificuldade de ordem técnica, dizendo “refere-se ao total remuneratório de servidor””. Foi vencido, contudo, quanto à sugestão. Face a isso, concluiu: “Se entendermos que é um pleonasmo necessário, até que recuo, mas que é um pleonasmo é”.
Superadas as restrições, a proposta de súmula (que tomou o nº 16) foi, assim, aprovada: “Os artigos 7º, IV, e 19, § 3º (redação da EC 19/98), da Constituição referem-se ao total da remuneração percebida pelo servidor.”
* Vice-reitor acadêmico da Universidade do Legislativo Brasileiro (Unilegis), professor-titular da UnB e do UniCEUB, presidente do Conselho Fiscal do Instituto dos Magistrados do Brasil (IMB), membro fundador do Instituto dos Advogados do DF (IADF) e efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).