BSPF - 09/10/2016
Para baixar os custos de pessoal, profissionalizar a administração
e conter as greves nos serviços públicos, o governo terá de enfrentar o
corporativismo dos servidores e a resistência do Congresso e do Judiciário às
mudanças
O mamute - um paquiderme pré-histórico com espécies que
chegavam a alcançar cinco metros de altura e a pesar até dez toneladas - é
considerado um dos maiores mamíferos de todos os tempos. Para efeito de
comparação, o elefante, seu parente moderno e o maior animal terrestre
existente hoje, pesa, no máximo, seis toneladas e sua altura não supera quatro
metros. Talvez, por isso, o Estado brasileiro - gigante, pesado e lerdo - seja
frequentemente comparado a um mamute. Mesmo com sua força e seu tamanho, o
elefante parece acanhado para simbolizar as proporções extraordinárias
adquiridas pelo Estado no País.
O fardo estatal se faz sentir sobre os cidadãos e as
empresas de forma implacável. Ele se expressa nos impostos de Primeiro Mundo
que os brasileiros têm de pagar, em troca de serviços de Terceiro Mundo, na
burocracia que emperra o cotidiano das famílias e o desenvolvimento dos
negócios e na corrupção endêmica, que cria dificuldades para vender
facilidades. Mas, hoje, talvez, nada simbolize tanto o peso que a sociedade tem
de carregar para manter o mamute em pé quanto o funcionalismo e seus privilégios.
Nos últimos anos, impulsionado pelo estatismo pregado nos governos Lula e
Dilma, com impacto em todo o País, o número de funcionários públicos deu um
salto. Segundo uma pesquisa realizada pela Diretoria de Análise de Políticas
Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGVDAPP), o total de funcionários na ativa
passou de 5,8 milhões, em 2001, para quase 9 milhões, em 2014, nos três níveis
de governo (federal, estadual e municipal) e nos Três Poderes (Executivo,
Legislativo e Judiciário) - um aumento de 54,4%. Isso sem contar os
funcionários terceirizados, principalmente nas áreas de limpeza, segurança e
manutenção predial, que somam cerca de 18 mil só no governo federal.
O maior crescimento do efetivo, de 94%, aconteceu nos
municípios, em parte pelas novas atribuições recebidas com a Constituição de
1988, para criar e manter serviços públicos de alcance local. No Executivo
federal, embora o crescimento tenha sido um pouco menor - cerca de 30% - foram
contratados 120 mil novos servidores no período, mais que o dobro do total de
trabalhadores do Bradesco, um dos maiores bancos do País. Também contribuiu
para o aumento do número de funcionários a criação de novos Estados e
municípios após a promulgação da Constituição de 1988. Desde então, o número de
municípios cresceu cerca de 40%, de 3.900 para 5.570. Isso levou ao aumento das
representações nas Assembleias Legislativas e no Congresso Nacional, ao aumento
das bases do Judiciário e à criação de estruturas administrativas para dar
suporte aos novos entes federativos.
"O povo, para sustentar as novas estruturas, continuou
o mesmo", diz o jurista Ives Gandra da Silva Martins, professor emérito da
Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado Maior do Exército e da
Escola Superior de Guerra. Com o tsunami de contratações, era inevitável que os
gastos com pessoal crescessem em progressão geométrica. Mas eles aumentaram em
ritmo ainda mais acelerado que o das contratações, em decorrência da concessão
de aumentos salariais bem acima da inflação para o funcionalismo. O
"rombo" existente hoje nos orçamentos do governo federal e de vários
Estados e municípios é decorrente, em boa medida, do inchaço da folha de
pagamento nesse período. Desde 2001, as despesas com pessoal tiveram um aumento
de 127,3%. Passaram de R$ 171,6 bilhões para R$ 390,2 bilhões em 2014, em
valores já corrigidos pela inflação. A diferença daria para o governo federal
pagar o Bolsa Família, concedido a 13 milhões de beneficiários, de acordo com
dados oficiais, por sete anos. A conta das benesses, como sempre, sobrou para
os pagadores de impostos. O gasto per capita dos brasileiros para pagar os
salários do funcionalismo quase dobrou em 14 anos, de R$ 976 para R$ 1.925, em
valores de 2014, também considerando os três níveis de governo e os Três Poderes
(veja os gráficos).
"A despesa de pessoal do governo é muito grande e tem
muita importância na composição de gastos do governo", afirma o professor
Nelson Marconi, coordenador executivo do Fórum de Economia na FGV de São Paulo
e um dos responsáveis pela reforma administrativa realizada no governo Fernando
Henrique. "O ajuste fiscal tem de passar pela questão de pessoal."
Enquanto no setor público os salários subiram, em média, cerca de 50% nos três
níveis de governo desde 2001, na iniciativa privada o aumento médio ficou em
21,4%, já descontada a inflação do período. O aumento real do funcionalismo, na
média, foi mais que o dobro do obtido no setor privado. Essa diferença só
encontra paralelo em Portugal, onde alcança 58%, segundo um levantamento feito
pelo economista Marcos Köhler, consultor legislativo do Senado. Na Alemanha, os
salários do funcionalismo são, em média, 7% menores que no setor privado.
Na França, 8%. Mesmo em países em que os salários do setor
público são maiores, como Espanha, Grécia e Itália, a diferença fica em torno
de 30%, bem aquém do que acontece no Brasil (e em Portugal). "Havia uma
grande influência sindical no governo", diz Köhler. "Isso contribuiu
para a obtenção de acordos salariais muito favoráveis pelo funcionalismo no
nível federal, que acabaram influenciando o setor público como um todo."
Obviamente, a média salarial do funcionalismo esconde os casos extremos, tanto
na base como no topo da pirâmide. Mas, nos últimos anos, os salários iniciais
das diferentes carreiras da administração, em especial na esfera federal,
receberam aumentos reais generosos, distanciando-os também dos valores pagos no
setor privado. Enquadram-se nessa categoria os motoristas da Câmara Federal,
que ganham mais de R$ 12 mil, e os garçons do Senado, com salário superior a R$
17 mil, o menor para servidores efetivos, sem escolaridade, mas com comprovação
de "capacidade técnica" para a função. É no andar de cima, porém, que
se encontram os casos mais escandalosos, particularmente no Poder Judiciário,
onde os valores dos benefícios recebidos "por fora" superam, muitas
vezes, os valores dos salários ou chegam bem perto deles, engordando os
vencimentos. São tantos os subterfúgios que, em muitos casos, o teto
constitucional - que limita os salários do setor público federal aos
vencimentos recebidos pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), aos
dos governadores nos Estados e aos dos prefeitos nos municípios - tornou-se uma
peça de ficção.
Mesmo com salários
bem acima da média do mercado, custeados pelos contribuintes, o apetite do
funcionalismo parece não ter fim. No momento em que o Brasil real enfrenta a
recessão interminável, o desemprego recorde e a queda na renda, os servidores
federais, protegidos pela estabilidade no emprego e com a aposentadoria
garantida com o mesmo salário da ativa, lotam as galerias do Congresso Nacional
para reivindicar, sem constrangimento, a aprovação de aumentos reais de salário
e a preservação de suas vantagens. "Alguém teria de dizer para eles que
nós estamos numa crise fiscal muito grande e que o que estão pedindo não tem
nexo com o mundo real", afirma Marconi. Ao mesmo tempo, as greves e
ameaças de greves em serviços essenciais, como saúde e segurança, sem desconto
dos dias parados e sem risco de represálias, tornaram-se uma realidade que
afeta de forma dramática o dia a dia da população, em especial nas faixas de
menor renda, que dependem quase exclusivamente dos serviços públicos. "No
Brasil, há uma classe que se aproveita de todo o setor privado e manda no País",
diz o economista Antonio Delfim Netto, ex-ministro da Fazenda, do Planejamento
e da Agricultura.
"O Brasil é
vítima do corporativismo estatal que se apropriou de Brasília." Segundo o
advogado Almir Pazzianotto, ex-ministro do Trabalho e ex-presidente do Tribunal
Superior do Trabalho (TST), é difícil enfrentar os interesses do funcionalismo,
porque os servidores têm intimidade com os deputados, senadores e estão dentro
do Congresso, das Assembleias Legislativas e das Câmaras Municipais, que
deveriam ser os responsáveis pela aprovação de medidas para restringir os
privilégios. "A corporação não está pensando no bem comum, mas em seus
próprios benefícios", diz Pazzianotto. "Nós trouxemos a ideia do
corporativismo do fascismo. É uma coisa um pouco medieval também, das velhas
corporações de ofício, que se organizavam para proteger as atividades
profissionais de seus integrantes". Embora o espírito de corpo predomine
no funcionalismo, nem todos rezam por essa cartilha. Muitos servidores públicos
fazem jus ao título. Trabalham duro para servir à população e se preocupam em
efetuar suas tarefas com dedicação e eficiência, muitas vezes sob os olhares
enviesados dos colegas. As generalizações quase sempre acabam promovendo
injustiças. Feita a ressalva, porém, não dá para negar o que qualquer
brasileiro que já entrou numa repartição pública pode observar.
Em geral, há um contingente razoável de funcionários que,
escudados pela estabilidade, fazem o que se costuma chamar em português claro
de "enrolação". Nos cargos de livre nomeação, que somam cerca de 21
mil, conforme os dados oficiais mais recentes, boa parte dos interessados, de
acordo com Pazzianotto, já se aproxima dos políticos mal-intencionada, para
obter um privilégio, e não para se tornar um servidor exemplar. "O
princípio do privilégio é o não comparecimento ao trabalho, não ter a obrigação
de cumprir horário", diz. "Você sempre tem aquele funcionário
faltoso, acumula falta, sempre tem atestado médico e você sabe que ele é apenas
um ocioso, não quer trabalhar." Pazzianotto afirma que, ao assumir a
presidência do TST, encontrou em seu gabinete mais de 200 funcionários
comissionados, quando precisava de apenas 20. "Eu tinha até funcionário da
presidência em Nova York. O marido foi para lá e a mulher foi atrás,
devidamente autorizada." Ele conta que, na ocasião, chamou um funcionário
do TST, que já conhecia, para uma conversa.
"Eu disse: 'Escuta fulano, em todos esses anos que
estou aqui, vejo você namorando pelos corredores o dia inteiro, está sempre
encostado com uma funcionária, não necessariamente a mesma. Comigo você não vai
fazer isso. Você vai ter de trabalhar." Embora haja muitas áreas com
excesso de pessoal, há outras em que falta gente. De acordo com Nelson Marconi,
na área administrativa, é comum haver uma quantidade grande de servidores, com
baixa produtividade, porque não há tanta cobrança como na iniciativa privada.
"De forma geral, daria para cortar fácil, fácil, pelo menos 10% do
pessoal", diz Nelson Marconi. "Na esfera administrativa, poderia ter
um corte até maior, de uns 20%." Por ora, porém, parece pouco provável
que, no atual cenário político e econômico, o presidente Michel Temer esteja
disposto a abrir mais essa frente de batalha.
Artigo publicado originalmente no jornal O Estado de S.
Paulo.