BSPF - 16/02/2020
Visão do governo Bolsonaro sobre a reforma administrativa
está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da
cidadania
A democracia e o desenvolvimento dependem de um serviço
público de qualidade e responsável perante a sociedade. Eis uma máxima da
experiência internacional que abarca os países que combinam esses dois
elementos. Mesmo com diferenças em alguns aspectos, vigora em todos eles um
modelo baseado na profissionalização e responsabilização dos funcionários
públicos. Se o Brasil almejar ser democrático e desenvolvido, precisa seguir
esta trilha, o que vai significar fazer reformas em certas características da
administração pública, sem que se perca o sentido nobre dessa função que, a
despeito dos problemas existentes, tem sido essencial para melhorar a vida do
país.
Mais uma vez, o Brasil realiza um daqueles debates estéreis
baseados em visões dicotômicas de mundo. Não se deve nem defender um modelo
meramente corporativista, e tampouco uma visão de que os funcionários públicos
são uns parasitas. Qualquer ação nesse campo envolve um diagnóstico capaz de
entender quais foram os avanços e os problemas que persistem.
Três elementos gerais podem ser destacados como marcas
negativas na história do Estado brasileiro. O primeiro deles é o
patrimonialismo. Esse fenômeno diz respeito à apropriação privada da coisa
pública, podendo se manifestar na corrupção, na distribuição de empregos a
amigos e parentes, bem como na criação de privilégios públicos a empresários ou
categorias do funcionalismo público. A falta de transparência e de controles
ajuda muito na manutenção desse modelo cartorial, que já se manifestou em
governos de todos os espectros políticos, inclusive no atual, famoso por sua
filhocracia.
A qualidade da gestão pública é outro tema relevante,
envolvendo a capacidade de produzir melhores políticas públicas. Grande parte
da máquina pública foi ineficiente ao longo da história, ao que se somava um
sistema legal que aumentava os custos para a sociedade sem lhe dar os
benefícios, como comprova a gigantesca legislação que procura regular todos os
aspectos da vida dos cidadãos, favorecendo a pequena corrupção dos fiscais e os
grupos que têm acesso privilegiado ao Estado.
Ter serviços públicos de qualidade não é, ressalte-se,
apenas uma questão gerencial. Trata-se também de servir a quem mais precisa,
num país cujas marcas da escravidão transformaram-se em desigualdade
persistente no tempo. O problema é que a administração pública brasileira até
1988 não era para os pobres. Grande parte da população estava fora da escola e
os hospitais só atendiam quem tinha carteira assinada.
O balanço das características gerais da administração
pública tem como último elemento a democratização do Estado. Em poucas
palavras, os cidadãos tinham pouco espaço para participar ou para fiscalizar as
políticas públicas. E mesmo no caso de medidas embasadas por alguma modelagem
técnica, prevalecia a tecnocracia, que decidia de cima para baixo e sem diálogo
com a sociedade.
Mesmo com todos esses problemas, houve processos de
modernização da gestão pública na trajetória do século XX, como a
profissionalização iniciada por Vargas ou a criação de órgões extremamente
inovadores e com grande impacto sobre os rumos do país, como a Embrapa, o
Itamaraty e os escolas técnicas federais, para ficar só em alguns exemplos.
Além disso, houve importantes lideranças burocráticas que
melhoraram o Estado em seu tempo, como foram os casos de Jesus Pereira Soares,
Celso Furtado, Roberto Campos e Anisio Teixeira, novamente selecionando apenas
alguns nomes de uma extensa lista que comprova que sem bons burocratas não há
desenvolvimento e melhoria da sociedade.
Desde a Constituição de 1988, passando pela inovadora
Reforma Bresser e ainda por uma série de inovações setoriais, a administração
pública brasileira avançou bastante nos últimos 30 anos. Os serviços públicos
chegaram aos cidadãos mais pobres, algo inédito na história do país. A
palavra-chave aqui é universalização, no caso de escolas, de acesso à saúde, de
renda básica para pessoas que vivem na pobreza, entre os principais direitos
construídos a duras penas.
Claro que existe um longo caminho para melhorar a qualidade
dos serviços públicos brasileiros. Só que não se pode esquecer que, sem ignorar
os problemas, já há resultados em termos de indicadores sociais derivados dos
novos equipamentos públicos, reduzindo a mortalidade infantil, aumentando a
escolaridade e a expectativa de vida da população.
Parte disso veio de muitos funcionários públicos
concursados, abnegados e anônimos, que garantem a vacinação da população
ribeirinha da Amazônia e ensinam com prazer em áreas pobres e violentas, por
vezes mudando a vida de crianças cujas famílias nunca sonharam em ter um filho
com diploma.
A democratização completa esse ciclo de transformações da
administração pública. Houve um avanço dos controles democráticos, por meio de
conselhos de políticas públicas que se espalharam pelo país. Esse processo
aproximou, em boa medida, os formuladores das políticas públicas dos reais
beneficiários. Grupos que nunca tinham tido voz começaram a defender seus
direitos – e efetivamente ganharam programas e acesso à dignidade cidadã.
Os avanços não mascaram os problemas da gestão pública do
país. Um deles foi em grande medida resolvido no ano passado: o Brasil tinha um
modelo de Previdência Pública completamente disparatado, muito distante do
padrão existente nos países desenvolvidos. Certa vez, um especialista da
Suécia, um país fortemente igualitário, me dissera num debate: “a Previdência
Pública brasileira é uma homenagem à desigualdade”.
O capítulo da Previdência Pública ainda não acabou, porque
falta resolvê-lo também nos Estados e, sobretudo, nos municípios. Há ainda uma
agenda vinculada à questão dos recursos humanos que tem de ser enfrentada. Os
salários iniciais das carreiras de Estado, especialmente no plano federal, são
muito altos, com pouco avanço salarial ao longo de carreira, ao que se somam
processos de promoção e benefícios por avaliações que são exemplos do pior
corporativismo. Este caso não é só um problema fiscal, mas também de redução da
motivação dos funcionários – se o rendimento inicial é próximo do final se reduz
a disposição para melhorar – e de “accountability” perante a sociedade.
A ideia de avaliação e responsabilização do servidor público
no Brasil ainda é uma quimera. O estágio probatório, cumprido nos primeiros
anos de carreira, não serve para nada: nem para ensinar o novo funcionário nem
para avaliar se ele deve continuar na administração pública. Depois disso, há
pouquíssimas chances de servidores claramente incompetentes e inaptos serem
demitidos. Na maior parte das democracias desenvolvidas, há processos muito bem
estruturados de avaliação, com vários aspectos em questão (desempenho
individual, coletivo, visão dos cidadãos, opinião dos pares etc.) e com grande
direito de defesa para cada burocrata, e que levam regulamente à troca daqueles
que não estão servindo bem à população. Isso é visto de forma natural e não
como um escândalo e sequer como um “crime” do demitido.
Ao mesmo tempo que é preciso tornar a administração pública
mais voltada para a melhoria do seu desempenho e para responder aos cidadãos, é
igualmente necessário que as condições profissionais melhorem em parte do
Estado brasileiro. Como mostram os rankings internacionais, professores ganham
muito mal no Brasil. Faltam médicos nas áreas mais carentes do país.
Funcionários do Incra, do Ibama e da Funai são cotidianamente ameaçados de
morte, enquanto uma parcela de policiais militares brasileiros morre quando
está fora do trabalho. Por isso, a precariedade precisa ser levada em conta
quando se fala do funcionalismo em geral.
A fórmula ideal é ter um modelo de gestão pública que
garanta a profissionalização do serviço público, combinando meritocracia e
mecanismos de participação social, como também responsabilização e motivação
dos servidores. Por esta razão, o que saiu até agora na imprensa sobre reforma
administrativa, especialmente da discussão da Câmara, são temas importantes,
mas que não abarcam todas as questões necessárias para a melhoria da
administração pública.
Se é necessário, por um lado, racionalizar o funcionalismo
federal, com excesso de carreiras e poucos estímulos ao aperfeiçoamento
individual e coletivo, por outro lado tem de se reduzir o patrimonialismo
indecente que ainda vigora na seleção para os altos cargos do...
Leia a íntegra em O desmonte do serviço público