Autor(es): Josie
Jeronimo, Vinicius Sassine e Adriana Bernardes
Correio Braziliense -
04/09/2011
Sob a chancela de placas do Executivo, do Legislativo e do
Judiciário, veículos a serviço de ministros, parlamentares e magistrados
acumulam infrações e, em alguns casos, fatalidades. Vítimas de acidentes
reclamam da impunidade e da ausência de assistência médica e
material.
Era mais uma quinta-feira de trânsito caótico nas vias
próximas à Esplanada, dia em que as autoridades se apressam para deixar
Brasília rumo a seus estados de origem. Às 18h30 de 7 de outubro de 2010, o
motorista do carro oficial da Secretaria de Políticas para as Mulheres da
Presidência da República fez um "gato", nas proximidades do
Ministério do Trabalho, para encurtar o percurso e fugir do congestionamento.
Trafegando na contramão, o veículo que transportava a ex-ministra Nilcéia
Freire bateu na moto de Ricardo Alexandre Monteiro, 25 anos, causando dupla
fratura de fêmur do piloto e a morte de sua noiva, Fabíola Reis Carigé, na
época com 19 anos, que estava na garupa. Depois do acidente, o motorista foi
cedido para o Ministério da Agricultura, sem sofrer qualquer tipo de punição. A
fatalidade é o extremo de uma situação corriqueira no coração do poder: o
império da impunidade no trânsito, quando as infrações são cometidas por
veículos oficiais.
A cultura dos privilégios concede aos carros oficiais o que
os especialistas chamam de "consignação de prioridade", condição não
formalmente prevista na legislação, mas consolidada na experiência do dia a
dia. Há dois anos, os veículos enquadrados nessa categoria nem sequer recebiam
multas de trânsito quando flagrados em situação irregular. Dados da execução
financeira dos Três Poderes mostram que o montante pago em multas cresceu 90%
de 2010 para este ano, depois da formalização do sistema que vincula as placas
oficiais ao número do Renavam dos carros, para penalizar os motoristas
infratores. Em 2011, a União desembolsou R$ 2,59 milhões em multas, relativas a
veículos oficiais e de serviço em todo o país. A capital federal, por abrigar a
cúpula do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, protagoniza as principais
histórias de maus exemplos do poder público no trânsito. Só este ano, a Polícia
Militar do Distrito Federal atendeu a 180 ocorrências de acidentes de trânsito
envolvendo carros oficiais. O número corresponde a 22 colisões por mês — uma
por dia útil.
Amparados pelo "suposto foro privilegiado" que a
placa oficial ou as inscrições institucionais garantem aos veículos, os
condutores não se inibem nem mesmo com a presença da fiscalização, conta um
agente de trânsito que pediu para ter o nome preservado. "Um veículo com a
placa apagada passou em altíssima velocidade pela nossa viatura. Fomos atrás e,
quando fizemos a abordagem, descobrimos se tratar de um carro oficial. Era uma
Palio Weekend. Ao verificar a placa, descobrimos que ela estava ilegível não
pelo desgaste natural do tempo, mas porque havia sido raspada para evitar
multas."
Falta transparência
A sensação de impunidade dos envolvidos nas infrações de
trânsito com carros oficiais é inversamente proporcional à transparência que os
órgãos responsáveis dispensam ao tema. As informações que poderiam mostrar como
dirige o poder público são guardadas em uma caixa-preta. Desde maio, o Correio
pediu, por meio de requerimento de informação encaminhado por um parlamentar e
solicitações formais da reportagem, o número de infrações cometidas por
veículos da categoria oficial. O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) e
o Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) se recusaram a
fornecer os dados. O Denatran, que administra o Fundo Nacional de Segurança e
Educação de Trânsito (Funset), transferiu ao Detran a responsabilidade pelas
informações e o órgão do DF nem sequer respondeu à demanda.
Apesar das negativas das autoridades, o Correio teve acesso
aos números das placas, ao Renavam e aos chassis dos carros oficiais em uso por
Presidência, Câmara e Senado, e consultou o histórico de infrações dos
veículos. O levantamento dos automóveis do Congresso revela que a imprudência
dos condutores ocorre nos veículos que transportam autoridades e repete-se nos
automóveis de serviço. Dos 120 carros do Senado que estão em circulação, 45 têm
histórico de recorrentes infrações de trânsito. Um dos carros oficiais da Casa,
um Fiat Marea placa JFP 3615, recebeu quatro notificações de infração em um
período de dois meses. Um carro da Câmara registrado com a placa JFP 2611
acumula 31 multas no histórico, com média de uma infração por mês. Em muitos
casos, os automóveis são flagrados mais de uma vez em irregularidades e as
notificações apresentam valores cumulativos, como é o caso dos ônibus da Câmara
e do Senado que foram multados este ano em R$ 638,47 e R$ 574,2,
respectivamente.
Salário descontado
Quando um carro oficial é multado, o motorista tem o salário
descontado no valor da punição. Funcionários do Senado ouvidos pelo Correio
contam que, na maioria dos casos, as infrações são cometidas a pedido das
autoridades que estão sendo conduzidas. "Se chegar na garagem
argumentando: "O senador mandou correr", o chefe diz: "Não tenho
nada com isso". Quando o motorista é servidor da Casa e o senador manda
passar um sinal vermelho, por exemplo, o funcionário tem coragem de perguntar:
"O senhor vai pagar a multa?"", relata um servidor do Senado.