Evelyn Levy
Valor Econômico - 19/12/2011
Estamos ainda pouco habituados a pensar o Brasil a médio e
longo prazo e o impacto que terão nossas decisões de hoje dentro de algumas
décadas. Vários países já têm planos de longo prazo, em que projeções
demográficas são relacionadas à evolução das finanças públicas, como a
Austrália que tem um "Intergenerational Plan", que prevê as despesas
nos próximos 40 anos e corrige os dados a cada cinco anos.
No Brasil, dada a rigidez das despesas com pessoal no setor
público, uma das dimensões que deveríamos considerar é aquela relativa à
contratação de servidores públicos.
O debate sobre esse assunto, em geral, está, entre nós,
centrado em torno de posições que condenam o número - supostamente exagerado -
de servidores, versus argumentos em favor de concursos para garantir a
meritocracia e sua implícita imparcialidade.
Creio que colocar o debate em torno desses eixos é um
equívoco. De fato, o número de servidores não é exagerado: o Brasil tem
mantido, há décadas, a média histórica de ter em torno de 11% de sua População
Economicamente Ativa (PEA) trabalhando no setor público. Em termos comparativos
também a situação não é anômala: entre os países da Organização para Cooperação
e Desenvolvimento Econômico (OCDE) essa participação varia de 5% a 28%.
Os parâmetros mais adequados então para esse debate deveriam
ser quanto pode o país dispender com salários e previdência do setor público?
E, nos limites impostos por essa despesa, qual a melhor maneira de realizá-la?
O país gasta hoje cerca de 15% do Produto Interno Bruto
(PIB) com a despesa de pessoal do setor público (Medeiros, 20111), o que
representa cerca de 43% da despesa pública (Medeiros, 2011) enquanto esse
percentual, em termos médios, gira em torno de 24% entre os países da OCDE
(OCDE, 20112). Seria importante diminuir essa despesa a médio prazo. Isso não
significa necessariamente diminuir os salários. Esses deveriam sempre flutuar
em torno dos valores pagos pelo mercado privado para ocupações equivalentes,
para garantir a atratividade do setor público. Retornando aos exemplos de
países da OCDE, vemos que muitos deles estão estabelecendo "taxas" de
substituição para os servidores que se aposentam nos governos centrais.
Áustria, Portugal e França estabeleceram admitir um servidor para cada dois que
se aposentam; a Itália e a Grécia, um em cada cinco; a Espanha definiu um
parâmetro mais rigoroso, um para cada dez que se aposentam (OCDE, 2011).
Atendida a premissa de um "teto" de despesa de
pessoal, a questão que resta discutir (e que é raramente lembrada) é qual é o
perfil de servidor que o Estado brasileiro irá necessitar daqui em diante? De
qual Estado necessitamos para o desenvolvimento do país?
Atualmente a definição de concursos no setor público - para
quais cargos deve haver recrutamento - se faz por pressão dos interesses já
organizados, sejam eles dos órgãos públicos existentes e/ou dos sindicatos. Os
governos - federal, estaduais e municipais - costumam não ter uma visão
estratégica dos recursos humanos de que irão necessitar no futuro mais próximo
e mais distante. Segundo dados da PNAD (Marconi4, 2010), entre 2002 e 2007, a
força de trabalho no setor público cresceu em torno de 20%, principalmente nos
Estados e municípios. Cerca de 20% desse total foi incorporado em atividades
auxiliares, técnicas e de apoio, que ainda hoje absorvem mais de 30% da força
de trabalho.
Os múltiplos desafios que cercam as sociedades
contemporâneas, suas economias e meio ambiente, exigem políticas públicas mais
complexas e integradas, baseadas em evidências sobre seus impactos. Demandam
regulação continuamente aperfeiçoada, para não se tornar um obstáculo, em vez
de uma alavanca ao desenvolvimento. Exigem mais, melhores e novos serviços
públicos - em virtude do envelhecimento da população, por exemplo - e nesse
sentido nosso passivo ainda é muito grande. Quais as prioridades?
Uma resposta genérica a essa questão é: as prioridades são
as de contratação de servidores para exercerem as atividades que são
exclusivamente estatais. Onde o setor privado e/ou o terceiro setor puderem
atuar deveriam ser fortemente considerados, como, aliás, admite a Constituição
brasileira. Essa é, não por acaso, a forte tendência dos países como o Reino
Unido, os Estados Unidos e outros.
Preconizar a terceirização não significa aceitar condições
precárias de trabalho; pelo contrário, esses contratos devem ser judiciosamente
acompanhados de modo a garantir a esses empregados seus direitos trabalhistas,
protegendo-os de relações oportunistas.
Os recentes casos de relacionamento espúrio entre os
governos e as entidades não governamentais também não deveriam impedir esse
caminho. O aperfeiçoamento das formas de controle (Modesto, 20103) seria uma
resposta muito mais eficaz. A contínua incorporação de servidores que não
exercem atividades exclusivas de Estado está comprometendo a despesa de pessoal
atual e futura, talvez por mais de quatro décadas, eventualmente impedindo que
as ações estratégicas do Estado possam ser executadas.
Medidas contínuas para aumento da transparência do setor
público, dando oportunidade ao exercício do controle social e participação; a
qualificação permanente dos servidores para o melhor desenvolvimento das
competências necessárias; a construção de carreiras mais flexíveis, que não
cristalizem grupos de servidores em atividades que poderão se tornar obsoletas,
ou em órgãos que poderão ser remodelados para atenderem a novas agendas; a
contínua incorporação da tecnologia da informação para o aumento da
produtividade, da transversalidade das políticas e da oferta de serviços
diretos ao cidadão; e a realização de processos seletivos para a ocupação de
cargos comissionados poderiam contribuir igualmente para um aumento considerável
do desempenho da administração pública brasileira. Essas ponderações estão
longe de indicar soluções. O debate precisa continuar, mas necessita mudar de
patamar.
1
(OCDE,2011)" Government at a Glance 2011, Public Workforce
Restructuring", OCDE, Paris
2 (Medeiros, 2011) "As despesas com pessoal dos estados
brasileiros" apresentação feita no IV Congresso CONSAD de Gestão Pública,
Brasília
3 (Modesto, 2010)"Nova Organização Administrativa
Brasileira", Editora Fórum e instituto Brasileiro de Direito Público, Belo
Horizonte
4 (Marconi, 2010) ""Uma radiografia do emprego
público no Brasil: análise e sugestões de políticas", in Burocracia e
politica no Brasil: desafio para a ordem democrática no século XXI. Editora da
FGV, Rio de Janeiro
Evelyn Levy é especialista em Gestão Pública, consultora
para o Banco Mundial, BID e Consad.