O Estado de S. Paulo
- 22/05/2012
São inconsistentes as alegações das entidades corporativas
do funcionalismo que se puseram a protestar e ameaçam ir à Justiça contra a
divulgação individualizada dos salários e "vantagens pecuniárias"
adicionais pagos aos servidores do Executivo federal. A determinação consta do
decreto assinado pela presidente Dilma Rousseff na quinta-feira passada para
regulamentar a Lei de Acesso à Informação que entrou em vigor na véspera. A lei
marca um histórico ponto de inflexão nas desiguais relações entre o Estado e a
sociedade, ao assentar o princípio de que a transparência deve ser a regra, e o
sigilo a exceção, nas práticas da esfera pública. Denominado Governo Aberto, o
conjunto de mecanismos destinados a intensificar o controle social das
atividades e procedimentos estatais já foi adotado - com diferentes resultados
- em 90 países.
Dos 934 mil funcionários incluídos na folha de pagamento da
administração federal só não terão os seus vencimentos revelados os que
trabalham em empresas públicas, sociedades de economia mista e outros entes
controlados pela União que atuam em regime de concorrência, a exemplo do Banco
do Brasil, Caixa Econômica e Petrobrás, sujeitos às normas da Comissão de
Valores Imobiliários. Conforme a praxe internacional, o decreto preserva informações
"cuja divulgação possa representar vantagem competitiva a outros agentes
econômicos". Assim como a lei que regulamenta, o texto deverá constranger
o Judiciário e o Legislativo a abrir também os proventos de seus quadros,
contra o que já se insurge, entre outras organizações de representação de
interesses corporativos, a Associação dos Magistrados Brasileiros.
São dois os argumentos dos sindicatos do funcionalismo. O
primeiro é o da "invasão de privacidade". A resposta óbvia é que o
público, ao custear com seus impostos a paga dos servidores por isso mesmo
chamados públicos, é o seu patrão. Daí ter o direito de conhecer em detalhe,
como o empresário do setor privado, quem recebe quanto na sua firma. De mais a
mais, não apenas a remuneração, mas os cargos ocupados e as funções exercidas
pelo funcionalismo são informações de interesse coletivo. "É o preço que
se paga pela opção por uma carreira pública no seio de um Estado
republicano", observou em 2009 o ministro Carlos Ayres Britto, atual presidente
do Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento da ação de uma servidora
contra a publicação de seu salário (com os de todos os colegas) no site da
Prefeitura paulistana. O STF deu ganho de causa ao Município. O governo do
Estado, aliás, anunciou que seguirá a norma federal.
O segundo argumento das corporações é que a medida da
presidente antes tira o foco da corrupção do que ajuda a combatê-la. "Os
desvios não se dão no contracheque do servidor, mas nas negociatas dos
gabinetes ministeriais", diz o dirigente sindical Oton Pereira, de
Brasília. O comentário é uma "bobagem", responde o ministro da
Controladoria-Geral da União, Jorge Hage. Os vencimentos serão divulgados,
explica, não por suspeitas de corrupção, mas porque o governo tem o dever de
prestar contas à sociedade. A rigor, é mais do que isso. Saber quanto ganha
cada servidor da máquina federal simboliza a prevalência da "sociedade
civil" (a população) sobre a "sociedade política" (o Estado).
Não se sustenta, no caso, a afirmação do dirigente da confederação do
funcionalismo federal, Josemilton Maurício da Costa, de que "transparência
tem limite". Claro que tem: é o dos atos e fatos da vida pessoal do
servidor que não interferem com a sua função pública, não sendo, portanto,
objeto legítimo de interesse geral. Mas o seu salário é.
A grita, de todo modo, deixou em segundo plano outro artigo
do decreto de regulamentação para o qual convém atentar - o que dá ao poder
público o direito de não responder a consultas, no âmbito da Lei de Acesso, que
sejam "genéricas, desproporcionais ou desarrazoadas", a critério do
órgão a que a demanda foi dirigida. Nesse aspecto, "lei e decreto não
dialogam", opina o professor Eurico Diniz de Santi, da Escola de Direito
da FGV, citado pelo jornal Valor. "Vão em caminhos opostos."