Bárbara Nascimento
Correio Braziliense
- 19/01/2014
Na base dos trabalhadores do setor público, a média dos
ganhos é de R$ 2,5 mil, o que leva muitos técnicos a fazerem dupla jornada para
reforçar o orçamento doméstico. Descontentamento é enorme
O estereótipo do Servidor Público federal estável, dono de
uma conta bancária invejável, está longe de ser a realidade para muitos que
ocupam os cargos no serviço público. Apesar de vários deles embolsarem gordas
remunerações - alguns, ultrapassando o teto constitucional, de R$ 29 mil, ao
incorporarem extras -, o grosso do funcionalismo que recebe vencimentos mais
baixos leva a média salarial do setor para cerca de R$ 2,5 mil mensais,
conforme dados do Ministério do Trabalho e do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). Não à toa, muitos têm uma dupla jornada e se viram com
toda sorte de bicos para complementar o orçamento doméstico.
O Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPE) mostra que
as menores remunerações estão no chamado carreirão. Constituído pela base do
funcionalismo, abrange 101,2 mil pessoas, entre ativos e aposentados. A
remuneração inicial é de R$ 1.034, que pode ser engordada pelo tempo de serviço
ou por meio de títulos conquistados ao longo do exercício da função. Nada,
porém, que seja motivo de comemoração. O técnico administrativo em educação
Alexandre Pires, 40 anos, que o diga. Servidor há quatro anos, ele afirma que
está longe de ter um contracheque que lhe garanta um futuro tranquilo. E
brinca: "Quando digo meu nome, todos lembram do cantor de pagode, mas
aviso logo que a semelhança termina aí. A conta bancária é muito
diferente".
Ele afirma que seu vencimento básico, somado à progressão
funcional - com base nos anos de serviço - e à Unidade de Referência de Preços
(URP), que aumenta em 26% o salário dos servidores da educação, alcança R$ 2,8
mil por mês. "Não é um valor satisfatório. Tenho mulher e dois filhos para
sustentar, um deles ainda pequeno. Por isso, o trabalho na educação para
técnicos administrativos é sempre temporário. Ninguém faz carreira. Já vi muita
gente abandonando o cargo", ressalta.
Apesar de, desde o início, saber que o salário para a vaga disputada
em concurso era baixo, o servidor foi atraído pela estabilidade. Hoje, está
frustrado. "Tenho estabilidade no emprego, mas não emocional. Trabalho
muito, não tenho um bom salário, o custo de vida está alto e moro mal",
desabafa Alexandre, que vive com a família na Cidade Ocidental, nos arredores
de Brasília.
Para melhorar a renda, vende bijuterias, anima festas
infantis e dá aulas sobre manuseio de balões. "Fiz até a logomarca das
minhas bijuterias. Tem o nome da minha mulher, Cida", conta. Todas as
atividades extras rendem a Alexandre R$ 6 mil por mês. "Mas, depois do
nascimento do meu filho mais novo, hoje com 1 ano e meio, o tempo ficou escasso
e tenho feito menos bicos", explica. Alexandre sonha administrar o próprio
negócio. Para isso, reabrirá a matrícula na faculdade de administração,
trancada há anos. "Quero retomar também porque um diploma me garantirá uma
renda a mais de titulação como servidor", destaca.
Tenho estabilidade no emprego, mas não emocional. Trabalho
muito, não tenho um bom salário, o custo de vida está alto e moro mal"
Alexandre Pires, técnico administrativo em educação, que
anima festas infantis e dá aulas de manejo de balões
Sonho de emprego único
Técnico do Hospital das Forças Armadas (HFA) desde 2001,
Rodrigo Félix, 38 anos, só consegue fechar as contas do mês devido à dupla
jornada de trabalho. Além do cargo de servidor, pelo qual recebe cerca de R$
2,8 mil por mês ajudando em laboratório, trabalha em uma instituição
particular, que rende outros R$ 3,7 mil. "Quando entrei no HFA, há quase
13 anos, meu rendimento equivalia a oito salários mínimos. Por isso, a função
era atrativa. Hoje, o vencimento corresponde a quatro mínimos", comenta.
Ainda assim, ele não pensa em trocar a carreira pública pela
particular. Rodrigo quer passar em um novo concurso, de nível superior.
"Foi o salário de servidor que permitiu que eu me graduasse em farmácia e
fosse contratado, como farmacêutico, em um hospital privado", conta.
"Se eu passasse em outro concurso, para uma vaga com salário melhor,
largaria o emprego particular" completa ele, que não esconde o desconforto
diante da grande diferença de salários no funcionalismo público.
O descontentamento de Félix é compreensível, no entender do
professor de direito constitucional do Ibmec de Minas Gerais, Alexandre Bahia,
pois a discrepância enorme entre os vencimentos dos Três Poderes não costuma
ser um padrão em outros países. "Isso só acontece em nações tão desiguais
quanto o Brasil. Não é normal uma diferença tão grande entre os salários, bem
como não é normal que um país seja tão desigual quanto o nosso",
acrescenta Alexandre Cunha, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Ele ilustra, por exemplo, casos de países europeus e do
vizinho Uruguai onde há a normativa de os servidores receberem salários
conforme a titulação. "Existe uma disparidade muito pequena entre um
professor e um juiz de direito. No Brasil, um magistrado em início de carreira
ganha mais do que um ministro da Suprema Corte americana", exemplifica.
(BN)
Funções estão em
processo de extinção
A dura vida dos servidores que integram o carreirão está
distante de ter um alívio. Apesar dos recentes aumentos salariais concedidos
pelo governo, de 15,8% em três anos, os rendimentos continuam defasados. Como
são muitos, se esses funcionários recebessem reajustes maiores, o impacto no
Orçamento seria pesado, conforme explica Alexandre Cunha, do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). O carreirão tem outro agravante: é composto
por mais inativos do que ativos. Por isso, sua tendência é de extinção ao longo
do tempo. A meta do governo é substitui-los por terceirizados.
Conforme o Ministério do Planejamento, existem hoje 39.439
ativos e 61.816 aposentados no carreirão. Isso acontece porque o Plano Geral de
Cargos do Poder Executivo (PGPE) concentra "uma parcela de cargos da
administração que são estritamente operacionais, muitos deles em processo de
extinção a partir das aposentadorias de seus ocupantes, por serem
desnecessários para a realidade atual" do funcionalismo.
É importante ressaltar que a base do funcionalismo público
vai além do carreirão, pois inclui funcionário da Previdência, da Saúde e do
Trabalho. Juntos, somam 385 mil trabalhadores. Há ainda o pessoal da educação e
da ciência e tecnologia. Nesses dois casos, os salários mais baixos são pagos
para aqueles que não são contratados em regime de dedicação exclusiva ou
possuem baixa titulação (mestrado e doutorado).
"Existem dois indicativos básicos para essas áreas há
algum tempo. Servidor de pesquisa deve ter dedicação exclusiva e titulação. O
governo paga, de propósito, salários muito ruins aos pesquisadores não
titulados, porque não quer que eles existam dentro do corpo de pessoal. O mesmo
vale para professores só com graduação", pontua. Um professor de ensino
básico e técnico sem titulação que trabalha durante 20 horas recebe,
inicialmente, R$ 1.597 por mês, podendo chegar a R$ 2.165. Caso tenha doutorado
e regime de dedicação exclusiva, o salário começa em R$ 8,8 mil e pode alcançar
R$ 14,1 mil.
O encolhimento das vagas do carreirão não está restrito ao
Executivo. Também no Legislativo e no Judiciário o número de servidores que
exercem funções que integram esse grupo da base do funcionalismo encolhe
rapidamente, seja por meio da aposentadoria, seja por meio da realocação para
outros postos.(BN)
Atendimento ao cidadão
O carreirão é composto por todos os cargos efetivos de nível
superior, intermediário e auxiliar não integrantes de carreiras específicas,
Planos Especiais de Cargos ou Planos de Carreiras instituídos por leis
específicas. Pertencem a ele os postos do Plano de Classificação de Cargos das
autarquias e fundações públicas, os analistas técnico administrativos de nível
superior e intermediário, com atribuições determinadas por lei (no atendimento
ao cidadão, por exemplo), analistas em tecnologia da informação, agente e
auxiliar na questão indígena.
O peso do diploma
Sônia Maria Aguiar, 56 anos, ingressou no serviço público em
1986 para um cargo de auxiliar de agente de portaria. Com o passar dos anos,
foi realocada para a área administrativa do Ministério da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento (Mapa). É ela a responsável pela entrada, no almoxarifado, de
todo o material de consumo do órgão. Não é por essa função, contudo, que a
servidora é conhecida.
Basta dar a hora do almoço para vários colegas do ministério
começarem a aparecer no subsolo, onde fica a sala de Sônia. Para complementar o
salário de R$ 3 mil (a soma do vencimento básico, de R$ 1,9 mil, com os extras
por tempo de serviço), ela vende produtos de beleza de várias marcas. Não há
quem não conheça as mercadorias ofertadas pela servidora.
Satisfação
Sônia sabe que ganha pouco, mas não reclama. "Tenho
orgulho do meu salário, pois já sabia que seria assim. Só tenho o segundo grau.
Não tive recursos para fazer faculdade e acabei me acomodando. Mas eu gosto do
que eu faço", diz, refletindo um sentimento pouco comum entre os técnicos
do carreirão. "Já recebi vários convites para ir para outros órgãos,
outros setores, mas não vou. Tem gente que fica mudando o tempo todo, atrás de
gratificação ou por estar insatisfeita. Mas eu não", completa.
Ela conta que foi a primeira servidora da família baiana, de
Salvador, de pais açougueiros. "Passei logo no primeiro concurso que
fiz", lembra, orgulhosa. A estabilidade a fisgou. "Trabalhei como
copeira em um órgão público assim que terminei o segundo grau. Via os
servidores e quis ter aquela estabilidade. Era a década de 1980 e vivíamos uma
situação econômica muito complicada. Era importante ter segurança financeira",
conta.
Hoje, com o quadro econômico mais estável do que quando
optou pelo funcionalismo, Sônia afirma que, talvez, pensasse duas vezes antes
de ser servidora. "Tem gente que tem vocação para ser gerente,
administrador, ter o próprio negócio, mas se ilude com o serviço público. As
pessoas acham que só há bons salários, que o servidor chega, coloca o casaco na
cadeira e sai, não faz nada. Isso não existe mais", afirma.
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