Correio Braziliense
- 20/11/2015
A Constituição se impõe pela voz do Supremo Tribunal Federal
(STF). A ele cabe, precipuamente, diz o art. 102, a guarda da Lei Fundamental.
Julgamento da Alta Corte tem o poder de anular lei ou revogar decisão de
qualquer outro tribunal, pois Legislativo e Judiciário se encontram sob
controle direto da constitucionalidade das respectivas leis e sentenças.
Prolixa e confusa, a Constituição de 1988 tem passado por
constantes reformas, mediante emendas cujo número ultrapassou a 80. Por seu
lado, a ausência de regulamentação de dispositivos enigmáticos exige do STF que
invada terreno reservado ao Legislativo, por meio de decisões dotadas de
marcante conteúdo normativo.
A apatia do Poder Executivo, a quem a Lei Fundamental
atribui competência única para tomar a iniciativa de lei específica, que
disponha sobre regime jurídico de servidor público, foi recompensada pelo STF,
no caso da greve de servidor público. Entende a Suprema Corte que, à falta da
lei específica, exigida pelo art. 37, VII, aplica-se à greve na administração
pública a Lei 7.783/89, dirigida a paralisações promovidas por operários,
comerciários, bancários, motoristas, radialistas, aeronautas. Afinal, para que
submeter ao Legislativo projeto polêmico de lei, destinada a fixar os termos e
limites a paralisações na
Previdência Social, Judiciário, Polícia Federal, saúde,
educação, após o STF equiparar servidores públicos a assalariados?
Convenhamos, todavia, que, entre ambos, as diferenças são
radicais. Empregado é a pessoa física que presta serviços de natureza não
eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário (CLT, art.
3º). A expressão servidor público corresponde ao titular de cargo público
criado por lei, com denominação própria, em número certo, pago pelos cofres de
entidade estatal, submetido a regime jurídico inconfundível com a legislação celetista.
Lei específica, ordena o art. 37, VII, do Estatuto Básico da Nação. Jamais lei
ordinária destinada a regular a greve na órbita da vida privada. Estamos,
portanto, diante de jurisprudência inconstitucional, originária do órgão cuja
finalidade é zelar pela guarda da Constituição.
Não bastasse a agressão feita ao Estado democrático de
direito, outra violência em breve poderá ocorrer. Em julgamento de greve de
servidores públicos da Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faeteec), entidade
pública do Rio de Janeiro, abrindo divergência ao voto do ministro Dias
Toffoli, para quem, mesmo não sendo abusiva, é indevido o pagamento dos dias de
paralisação, o ministro Edson Fachin entendeu de maneira oposta. Para S. Exª,
"a adesão de servidor a movimento grevista não pode significar opção
economicamente intolerante ao próprio grevista e ao núcleo familiar". Em
linguagem direta, significa dizer façam greve; os dias parados eu garanto.
Estive com os trabalhadores em grandes greves das décadas de
1960, 1970 e 1980. Presenciei a criação de fundos de solidariedade em São
Bernardo do Campo. Travavam-se disputas por salários, nunca pelo ressarcimento
de dias não trabalhados. A greve, segundo a Lei 7.783/89, "suspende o
contrato de trabalho". De acordo com a doutrina, com a suspensão, são
indevidas obrigações ligadas ao desenvolvimento contínuo da prestação do
trabalho. A prevalecer o insólito argumento do ministro Fachin, o equilíbrio de
forças, indispensável à legitimidade do movimento grevista, estará quebrado.
Apenas o empregador, seja empresa privada, seja órgão público, ver-se-á
prejudicado porque, em qualquer hipótese, a paralisação, breve ou longa, será
remunerada pela empresa ou pelo contribuinte.
A Assembleia Nacional Constituinte cometeu a imprudência de
assegurar o direito de greve no interior do serviço público, cujas atividades,
sustentadas pelo povo, são essenciais por natureza e definição.Teve o cuidado,
entretanto, de exigir regulamentação mediante lei complementar, posteriormente
substituída por lei específica (EC 19/98), modalidade inexistente no processo
legislativo (CF, art. 59). De qualquer modo, está lá: "O direito de greve
(na administração pública) será exercido nos termos e nos limites de lei
específica". O Supremo agrediu a Norma Fundamental ao determinar a
incidência da Lei 7.783 ao serviço público. Não cometa, agora, a insânia de
ordenar pagamento dos dias parados.
Artigo: Almir Pazzianotto Pinto Advogado; foi Ministro do
Trabalho e presidente do TST