UOL Notícias
- 26/10/2016
'Se vai ter cortes na escolas e nos hospitais, por que não
nos benefícios dos funcionários públicos?'
Essa é a pergunta que vem se multiplicando nas redes sociais
desde que o governo Michel Temer apresentou a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) 241, que pretende amenizar o rombo nas contas públicas.
Na terça-feira, o texto foi aprovado em segundo turno pelo
plenário da Câmara e agora segue para o Senado. Ele estabelece um teto para o
crescimento das despesas públicas federais e tem recebido muitas críticas por
alterar o financiamento em duas áreas essenciais para o bem-estar da população:
saúde e educação.
Mas como a PEC afeta os servidores federais?
Segundo especialistas consultados pela BBC Brasil, há três
tipos de impacto.
O primeiro deles está descrito na proposta: caso o limite de
gastos seja descumprido por um Poder (Executivo, Legislativo e Judiciário) ou
órgão, o mesmo não poderá conceder aumentos para seus funcionários nem realizar
concursos públicos. Outras sanções são impedir a criação de bônus e mudanças
nas carreiras que levem a aumento de despesas.
As medidas funcionam como uma forma de punição se a conta
não fechar.
Há também consequências que não são citadas na PEC, mas
podem vir após sua implementação, como o congelamento de salários e uma
discussão maior sobre distorções do funcionalismo público do país.
Salários congelados
De acordo com os especialistas, existe a possibilidade de
que, com a aprovação da proposta, os funcionários públicos deixem de ganhar
reajuste e não tenham suas remunerações corrigidas pela inflação - mesmo com o
cumprimento do teto.
Isso acontece porque o teto é global e vale para todos os
custos de um Poder ou de um órgão. Dessa forma, se o Executivo tiver que dar
mais verba para as escolas, por exemplo, poderá segurar as remunerações de seus
empregados.
Na prática, isso equivaleria a reduzir os salários, porque a
inflação - medida pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo - é
quanto poder de compra o dinheiro perde determinado período. Sem a correção, é
como se o pagamento diminuísse, porque o mesmo valor compra menos que antes.
Em 2015, 20% das despesas do governo federal foram com
pessoal. O percentual deve crescer mais com os aumentos concedidos neste ano.
Em julho, o presidente Michel Temer sancionou uma lei que
concedeu reajuste de até 41,47% nos salários dos servidores do Judiciário e
aumento de 12% para analistas e técnicos do Ministério Público da União.
No entanto, o que mais prejudica as contas públicas é a
Previdência desse grupo de mais de 2 milhões de pessoas, das quais 44% são
aposentados ou pensionistas.
Mudanças na Previdência
Segundo cálculos do professor de economia da FGV e PUC-SP
Nelson Marconi, no ano passado os benefícios pagos a servidores federais somaram
R$ 105 bilhões.
Como as contribuições de quem está trabalhando não cobrem
esse montante, há um déficit de R$ 92,9 bilhões, próximo ao rombo de R$ 90,3
bilhões do INSS. A diferença é que o primeiro atende 980 mil pessoas e o
segundo, 32,7 milhões - é onde estão os profissionais da iniciativa privada.
Com uma participação tão expressiva na crise fiscal do país,
o fundador e secretário-geral da ONG Contas Abertas, Gil Castello Branco, não
vê outra escapatória a não ser mexer no funcionalismo.
"Pela magnitude do problema, não adianta imaginar que o
governo pode reequilibrar despesas cortando passagem aérea, vigilância,
segurança, como disse nas outras vezes. Dessa vez vai ter que acertar os
grandes grupos de despesas."
Esse controle, no entanto, está atrelado a alterações no
regime previdenciário, uma das principais fontes de gastos.
"Como os valores de aposentadoria têm evoluído ao longo
dos anos, para que o teto funcione e não leve ao corte de outras despesas em
saúde, educação e investimento, é preciso acontecer uma reforma da Previdência.
Se uma continuar a subir, vai ter que contrair a outra", afirma Marconi.
Para Gil Castello Branco, diante da importância de saúde e
educação, que receberam um tratamento diferente nas regras da PEC, os
funcionários não devem ser poupados. Ambas as áreas só entram no teto em 2018.
"A despesa com pessoal não é prioritária. Estávamos
discutindo se o orçamento de 2016, corrigido pela inflação, seria suficiente
para saúde e educação, e vimos que não. Por isso, veio esse tratamento
especial. Se estamos aumentando os gastos ali, não vamos podemos fazer isso com
os servidores."
Missão do funcionalismo
Para os entrevistados, a proposta pode levantar uma
discussão sobre privilégios e distorções no funcionalismo.
Um levantamento realizado pelo professor Nelson Marconi
mostrou que empregados da área pública ganham mais do que os da iniciativa
privada em todos os níveis de escolaridade. Entre os que têm ensino médio, por
exemplo, essa lacuna era em média 44% no ano passado.
Gil Castello Branco, da Contas Abertas, cita os salários
altíssimos de algumas carreiras e o sonho dos jovens de entrar em órgãos
públicos apenas pela estabilidade como algumas distorções produzidas pelo atual
sistema.
"Já houve matérias mostrando garçom do Senado ganhando
R$ 15 mil. Há margem, por esses valores estratosféricos, para você rediscutir a
estrutura de cargos e salários", diz.
"Em Brasília, por exemplo, há uma distorção grave a ser
corrigida quando se observa que o sonho de dez em dez jovens é fazer um
concurso público. O jovem quer ingressar numa carreira do Executivo, Judiciário
ou Legislativo, independentemente da vocação."
Branco acrescenta que, por já entrarem ganhando muito e não
terem progressão de salário, nem avaliação de desempenho, muitos profissionais
se sentem desmotivados. E acabam se acomodando.
A estabilidade no cargo, diz a economista-chefe da XP
Investimentos Zeina Latif, também seria um ponto a ser discutido. Ela argumenta
que, ao ter essa garantia, o funcionário deveria começar com um salário mais baixo,
para estimulá-lo a se desenvolver.
Segundo Latif, uma saída seria adotar valores do setor
privado como a "meritocracia e a concorrência". Essas práticas, ela
diz, já estão presentes em países como Dinamarca, Reino Unido, Suíça e México.
"Com o teto, a gente vai precisar discutir prioridades
e o incômodo em relação a quão caro é o nosso funcionalismo vai ficar mais
explícito. Se a sociedade começa a se incomodar com a estabilidade no setor
público quando há tanta gente desempregada, a discussão pode se tornar uma
pauta política."
Mas os entrevistados se mostram céticos quanto à capacidade
do governo Temer de implementar mudanças tendo em vista a pressão dos grupos
interessados e da instabilidade política do país.
"Não vão conseguir comprar tanta briga ao mesmo tempo.
Não vão mexer em tantas reformas. Não tem estabilidade e não dá tempo",
diz Nelson Marconi.
Membros do Legislativo e do Judiciário têm força para
inviabilizar esse debate e ainda garantir reajustes durante uma crise fiscal,
argumenta a coordenadora de Pesquisas do Dieese (Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos), Patrícia Pelatieri.
Isso porque têm mais autonomia e questões relacionadas a
aumentos, por exemplo, são legisladas ou julgadas por eles mesmos.
'Nem todos são marajás'
Ao mesmo tempo, Pelatieri pondera que o funcionalismo
público federal não é homogêneo e acha que é injusto dizer que toda a máquina é
inchada.
"Nem todos os funcionários têm tratamento isonômico, alguns
podem ter reajuste mais forte em detrimento de outras categorias. Quem trabalha
nos ministérios, na saúde, na educação, não tem o mesmo poder de quem trabalha
no Legislativo, no Banco Central, na Receita."
Segundo a pesquisadora, sem espaço para o crescimento da
folha de pagamento e com as sanções previstas na PEC, o teto deve levar à
redução do número de funcionários públicos, o que poderia poderia afetar ainda
mais os hospitais e escolas do país.
"É uma parte do funcionalismo federal a que tem salários
muito mais elevados do que nós, reles mortais. Não dá para colocar tudo num
saco de marajás."
(BBC Brasil)