Correio Braziliense
- 03/11/2016
Para o ministro da Transparência, Fiscalização e
Controladoria-Geral da União (CGU), melhorar a qualidade e a produtividade do
setor público exige melhor capacitação dos servidores e a revisão das vantagens
que eles têm em relação aos trabalhadores da iniciativa privada
O serviço público precisa passar por mudanças radicais para
melhorar a qualidade do atendimento e otimizar o retorno, na forma de serviços,
dos impostos pagos pela população. De acordo com o ministro da Transparência,
Fiscalização e Controladoria-Geral da União (CGU), Torquato Lorena Jardim, a
administração precisa, fundamentalmente, aumentar a capacitação e elevar a
produtividade dos servidores. Para ele, um dos resultados do ajuste fiscal e da
proposta de emenda à Constituição que limita o crescimento dos gastos do
governo (a PEC 55, em tramitação no Senado) poderá ser, além da continuidade do
racionamento dos concursos para seleção de pessoal, o debate sobre o
"conforto da estabilidade" do funcionalismo e as discrepâncias entre
as condições de trabalho no setor público e na iniciativa privada.
"Essa é
uma diferença preocupante do ponto de vista ético, de difícil defesa",
avalia Jardim. Ele recorre a trabalhos de pensadores clássicos, como Max Weber
e John Kenneth Galbraith, para mostrar como a burocracia estatal assegura para
si uma série de vantagens inacessíveis aos demais trabalhadores, sem,
necessariamente, ganhar eficiência. "Se entende que a proteção da coisa
pública pede estabilidade, o servidor tem que ser submetido aos mesmos
critérios do setor privado", afirma. São dilemas que terão de ser
encarados, enfatiza o ministro em entrevista concedida ao Correio.
A necessidade de ajuste fiscal trouxe de volta ao debate
temas como qualidade e agilidade na prestação de serviço público, punições em
caso de desleixo, estabilidade no emprego e morosidade nos processos
administrativos disciplinares (PAD). Como o senhor vê essas questões?
Vamos fazer um pequeno histórico. Por que se concede
estabilidade ao servidor público? É um debate histórico, quase filosófico. Um
juízo de valor que cada legislador faz. O americano chamava isso de sistema de
despojos. Toda vez que mudava o partido do presidente, todos pediam demissão.
Surgiu a ideia de que a república, para ser estável, deveria conceder
estabilidade a algumas carreiras para que a condução da política pública
independesse da injunção política. Aí veio o segundo passo: quais carreiras devem
ter estabilidade?
Como essa discussão foi resolvida no Brasil?
Adotou-se no Brasil a solução do direito administrativo
francês. Mas é uma expressão subjetiva. Dizer que militares e diplomatas são
carreiras de Estado é fácil. Mas não conheço estudo que tenha objetivamente
concluído que o serviço jurídico seria menos eficiente, que a arrecadação seria
menor ou que haveria mais insegurança pública sem a estabilidade.
E qual foi a implicação disso?
No Brasil, em todas as constituintes, o estamento burocrático
sempre foi muito forte. Max Weber estudou muito o assunto. John Keneth
Galbraith, ao analisar países desenvolvidos e em desenvolvimento, pois
trabalhou na Índia, disse que a característica da sociedade estatal é tornar
refém a sociedade civil. Na Constituição, nas leis e no orçamento, ela assegura
para si uma série de vantagens que é impossível estender a todo o corpo social.
Cria uma clivagem, uma separação muito forte entre empregos no setor público e
no privado.
É o que acontece hoje no país?
Em todos os países que fazem do serviço público um ambiente
protegido por estabilidade funcional, o vencimento médio do servidor é muito
maior. A aposentadoria chega a ser quatro ou cinco vezes maior que a do setor
privado. Essa comparação é objetiva, enquanto número, mas não diz
necessariamente da substância. O setor público precisa de capacitação e
produtividade. Se entende que a proteção da coisa pública pede estabilidade, o
servidor tem que ser submetido aos mesmos critérios do setor privado.
Pesquisas apontam que, em média, o servidor é muito mais
escolarizado que o trabalhador da iniciativa privada. Mas, na sociedade, a
impressão é que a qualidade do atendimento é inversamente proporcional ao
conhecimento acadêmico. São esses os motivos dos PADs?
Falo em capacitação, não em titulação acadêmica. Em um país
em que se abre uma universidade em cada esquina, a titulação não resulta
necessariamente em capacitação. São duas coisas diferentes. Capacitação é
também tratar com dignidade quem procura o serviço público. Basta ver o que
ocorre em áreas básicas, como saúde, educação e saneamento. É um desastre.
O senhor acha importante alocar o servidor de acordo com o
seu perfil?
Isso também faz parte do conceito de produtividade.
Produtividade é uma relação de benefício decorrente da melhor utilização dos
meios e dos custos. É difícil explicar para a sociedade que, com uma carga
tributária de 40% do PIB, claramente não há produtividade nos serviços públicos
básicos. Quando um empresário perde negócio, a empresa não gera receita, há
demissões. No serviço público, seja qual for o tamanho da crise, o funcionário
continua empregado, estável, e contribuindo para a aposentadoria. Essa é uma
diferença preocupante do ponto de vista ético, de difícil defesa. Por isso, é válido
o debate sobre produtividade, capacitação e carreiras que devem ter
estabilidade. Que fique bem claro que essa é a minha percepção como cidadão.
Não é uma política pública no momento.
A tendência é sempre comparar o Brasil com outros países. Em
tempos de crise, o que aconteceu lá fora?
Nos Estados Unidos, por exemplo, quando não se aprova o
orçamento, o governo faz uma previsão mínima para os gastos básicos, os
serviços essenciais. O servidor fica, às vezes, 30 ou 40 dias sem receber. E
nem sempre há recursos para pagar períodos anteriores.
Isso seria impensável no Brasil, não é? Especialistas dizem
que as pessoas não querem ser cobradas, e, quando o são, se dizem perseguidas e
abrem um processo de assédio moral.
Segundo os antigos, o setor público ficou mais corporativo quando a capital saiu do Rio de Janeiro e veio para a Brasília. Porque lá, na praia, não importa o cargo, você é mais um, anda de ônibus e chega em casa suado, como qualquer outro. Brasília exacerbou o corporativismo. Os clubes aqui são por profissão. Me lembro de quando cheguei, fui jogar vôlei e, por acaso, dei uma cortada na testa de um mais graduado. Chegaram a me dizer que eu deveria deixar ele fazer ponto... O fim de semana dentro do clube tinha hierarquia. Todo mundo andava de carro oficial. Me lembrou de um DAS 3 que perdeu o carro e ficou furioso. Quem acabou com isso foi Collor de Mello.
Segundo os antigos, o setor público ficou mais corporativo quando a capital saiu do Rio de Janeiro e veio para a Brasília. Porque lá, na praia, não importa o cargo, você é mais um, anda de ônibus e chega em casa suado, como qualquer outro. Brasília exacerbou o corporativismo. Os clubes aqui são por profissão. Me lembro de quando cheguei, fui jogar vôlei e, por acaso, dei uma cortada na testa de um mais graduado. Chegaram a me dizer que eu deveria deixar ele fazer ponto... O fim de semana dentro do clube tinha hierarquia. Todo mundo andava de carro oficial. Me lembrou de um DAS 3 que perdeu o carro e ficou furioso. Quem acabou com isso foi Collor de Mello.
As vantagens aumentaram?
Para você ter uma ideia, os estrangeiros não conseguiam
entender nada. Recebi certa vez uma delegação do Banco Mundial em um clube
chique à beira do lago. Levei uma bronca do alemão. Ele olhou em volta e
perguntou: é nisso que você está botando o nosso dinheiro? Engoli em seco. E
isso vai demorar um tempinho para superar. É que, em Brasília, a economia local
depende de dois patrões: a União e o GDF. O servidor aqui é uma massa maior que
a iniciativa privada.
Como resolver a contradição de que, numa situação de crise,
a população, sem emprego, vai depender ainda mais dos serviços públicos? E o
problema de falta de informações para a sociedade? Não se sabe o custo efetivo
do servidor para a União, tantos são os benefícios e planilhas diferentes. Como
resolver também os dilemas entre gestão, bem-estar do servidor, fiscalização e
transparência?
Essa é uma pergunta de um bilhão de dólares. Vivemos os oito
anos do governo FHC com a concepção de enxugar a máquina administrativa e
privatizar o que era preciso. Ele enfrentou alguma resistência, mas a coisa foi
feita. Com Lula e Dilma, foi o inverso. A concepção ideológica deles era de que
o Estado tem que gerar emprego também. O Brasil chegou a ter mais de 26 mil
cargos de livre nomeação. Na gestão anterior, quem gerava emprego era o setor
privado.
O que é preciso agora?
Nessa transição, em função da PEC dos gastos públicos, que é
de uma necessidade absoluta, há várias coisas importantes. Não posso falar pelo
governo, nem pelo ministro Meirelles (da Fazenda). Mas acho que os concursos
públicos têm que ser muito seletivos para poupar recursos. E temos que rever o
papel do Estado. Ou seja, saber como usar os meios disponíveis.
Seria uma tentativa de realocar e readaptar a mão de obra
atual?
É preciso rever a administração pública para saber como
otimizar os meios para depois entrar na produtividade. Por isso, precisamos
conhecer as carreiras, o número de funcionários disponíveis.
Não se sabe ainda o quantitativo de servidores em cada
carreira, professores, engenheiros, médicos, técnicos?
Isso, certamente, o Ministério do Planejamento tem. Mas não
basta conhecer o número. Onde eles estão? Quantos professores estão em sala de
aula e quantos foram requisitados? Quantos médicos foram nomeados para a
periferia? Não é só conhecer quantos são. É redistribuir as tarefas e a força
de trabalho. Não se pode botar essa tropa toda na rua. Por isso, temos que
rever a administração pública, para otimizar os meios e, depois, entrar na
produtividade.
Voltando aos PADs, quanto tempo dura cada um?
Varia muito. Não sei dizer. O processo administrativo tem
todas as garantias do processo judicial. Precisamos ouvir testemunhas. Temos
aqui 9 mil casos em grau de recurso, que foram sancionados em algum órgão e
vieram para cá. Aqui é segunda instância.
Quando o senhor chegou, houve muita resistência de
servidores, que alegaram vários motivos de insatisfação: arbitrariedades,
demissões desmotivadas, mudança no nome da CGU, além de insalubridade e
sucateamento dos espaços. Isso faz parte da política. Era o governo do PT, nas
condições em que saiu; agora, é a nova administração, nas condições
constitucionais em que entrou.
E a avaliação política que eles fizeram foi
aquela gritaria. Recebi aqui o presidente do sindicato e tudo foi superado. Quando
eu cheguei, em 2 de junho, o nome da pasta há havia sido mudado de CGU para
Ministério da Transparência, Fiscalização e Controle. O governo do presidente
Michel Temer já estava instalado havia mais de um mês. Na primeira e a única
vez em que conversei com (o ministro Eliseu) Padilha, da Casa Civil,
imediatamente concordamos em manter o nome CGU. Disse isso ao sindicato desde o
começo. Mas, por conveniência política deles, continuaram as manifestações.
O órgão sofreu contingenciamento severo?
Não. As fiscalizações estão andando. É preciso distinguir o
discurso sindical, o interesse político, da realidade. Sucateamento só existe
na cabeça dos sindicalistas. Visitei Bahia, Rio de Janeiro, Florianópolis. Tudo
normal. Quanto ao contingenciamento, houve cortes temporais. O suprimento de R$
10 milhões virá em dezembro. O custeio daqui é de R$ 81 milhões por ano para a
fiscalização. Apenas retardamos a entrada dos R$ 10 milhões de novembro para
dezembro.
Enfim, o senhor é contra ou a favor da quebra da
estabilidade? E da redução dos concursos públicos?
Nem contra, nem a favor. O mundo não é bipolar, nem
maniqueísta. O primeiro passo é capacitação e produtividade. Aí, vamos ver se a
estabilidade é viável ou não.
Porque há tanta resistência em falar em produtividade no
setor público?
Acho que a produtividade é essencial. Não existe hoje
gerenciamento de recursos sem falar em produtividade. Não precisa ter MBA para
ver isso.
(Vera Batista)