BSPF - 15/03/2017
Eu me lembro de uma colega nossa lá [em quem] o chefe chegou
a jogar café nela. Café quente.
O relato foi feito por um dos 359 funcionários do MRE
(Ministério das Relações Exteriores) que participaram de uma pesquisa realizada
pela UnB sobre as condições de trabalho no Itamaraty.
A pesquisa, divulgada na semana passada, revelou que 66% dos
entrevistados relataram terem sido vítima de assédio moral nos últimos cinco
anos e que, em 90% dos casos, os assediadores eram os próprios chefes. Em nota,
o MRE disse manter diálogo aberto e que
repudia todo ato que cause danos físicos, psicológicos ou sociais aos seus
funcionários .
A pesquisa realizada pelo Laboratório de Psicodinâmica e
Clínica do Trabalho da UnB foi encomendada pelo Sinditamaraty (Sindicato
Nacional dos Servidores do Ministério das Relações Exteriores). Ao todo,
aproximadamente 11% de todos os funcionários do MRE foram ouvidos seja por
questionários ou em entrevistas conduzidas pelos pesquisadores da universidade.
Participaram do estudo servidores do órgão lotados tanto no Brasil quanto no
exterior.
Dos 359 entrevistados, 277 (66%) relataram terem sofrido
alguma forma de assédio moral nos últimos cinco anos de trabalho. Ao todo, 88%
das pessoas que responderam à pesquisa disseram já ter testemunhado casos de
assédio moral no MRE ao longo dos últimos cinco anos.
Segundo a pesquisa, o motivo para a maior parte dos casos de
assédio é a diferença entre as carreiras entre os servidores do MRE.
Atualmente, existem cinco carreiras atuando no Itamaraty: Assistente de
Chancelaria, Oficial de Chancelaria, PCC (Plano de Cargos e Carreiras), PGPE
(Plano Geral de Cargos do Poder Executivo) e Diplomata.
Apesar de não haver uma hierarquia oficial em relação às
categorias, na prática, os principais cargos de chefia são designados a
diplomatas.
Para a presidente do Sinditamaraty, Suellen Bessoni Paz, as
relações de assédio entre funcionários de diferentes carreiras são resultado de
uma desorganização dentro do próprio MRE. Na medida em que as divisões de
tarefas não são claras, essa confusão acaba resultando em casos de assédio ,
afirmou.
O estudo também apontou que a maioria dos assediadores no
Itamaraty são homens. A pesquisa, porém, diz que não há associações
significativas entre ser vítima de assédio e o sexo . Supõe-se que isso pode
ocorrer devido a mais homens ocuparem cargos de chefia , diz um trecho do
estudo.
Um dos casos mais famosos de assédio praticados por
servidores do Itamaraty aconteceu em 2013. O s diplomatas Américo Fontenelle e
César Cidade foram suspensos após a conclusão de uma sindicância que apurou
denúncias de assédio moral, sexual, racismo, homofobia e abuso de autoridade.
Fontenelle recorreu judicialmente da suspensão. À época, seu
advogado disse que as acusações contra ele eram falsas. O caso se prolongou e,
na última sexta-feira (10), o Itamaraty publicou uma portaria no DOU (Diário
Oficial da União) suspendendo o diplomata por 60 dias, por, entre outras
violações, não manter comportamento correto e decoroso na vida pública e
privada .
Apesar de a publicação prever a suspensão do diplomata, ela
também indica que, na prática, ele não poderá ser punido porque o prazo para a
aplicação da penalidade já havia prescrito.
Além de um questionário, as pessoas que participaram do
estudo também foram entrevistadas pelos pesquisadores. Em algumas entrevistas,
servidores do Itamaraty relataram casos de agressão e descrença em relação à
capacidade do órgão em lidar com as denúncias que eventualmente são feitas
pelos funcionários.
Um embaixador uma vez me disse: Sabe quem eu sou aqui no
posto (representação diplomática no no exterior)? Eu sou Deus , disse um
funcionário.
Uma funcionária relatou assédio durante o período de
amamentação de seu filho. Uma vez a chefia de uma assessoria pediu que eu
desmamasse meu filho pra trabalhar , contou.
Alguns funcionários entrevistados relataram que além de o
Itamaraty não ter uma cultura de apuração de denúncias de assédio moral,
pessoas que desafiam esse quadro são vítimas de retaliação.
Outra funcionária tentou convencer uma colega que relatou
ter sido vítima de assédio moral a registrar uma denúncia na Delegacia da
Mulher, mas a vítima se recusou por medo de possíveis retaliações.
Eu falei [para colega que se queixou de assédio]: bora na
delegacia da mulher agora [...] Isso é assédio moral, violência de gênero, isso
é agressão e a gente vai fazer o corpo de delito agora. Eu vou com você. E ela
disse: Não, mas eu não posso ir. Eu perguntei: você está louca? Não pode ir por
que? Ela me respondeu assim: Porque [se] eu vou, eu vou ficar na geladeira ,
disse.
Em nota, o Itamaraty afirmou ter conhecimento sobre os
resultados da pesquisa, que está aberto ao diálogo sobre o assunto e que
repudia atos de assédio moral.
A Administração do Ministério mantém diálogo aberto, fluido
e constante com os representantes do Sinditamaraty sobre temas relacionados com
o funcionamento desta Instituição, inclusive os aspectos tratados na pesquisa ,
diz um trecho da nota.
Em outro trecho, o MRE diz que repudia todo ato que cause
danos físicos, psicológicos ou sociais a seus funcionários e reitera a
preocupação em aprimorar políticas e práticas institucionais de prevenção e
promoção da saúde mental dos integrantes do Ministério.
Fonte: UOL Notícias (Leandro Prazeres)