BSPF - 19/11/2017
O governo mais fisiológico, mais elitista e mais envolvido
nas práticas de corrupção dos últimos tempos, capitaneado por Temer, Meireles e
Padilha, trama uma nova investida para aprovar a tal “Reforma da Previdência”.
Trata-se, na forma apresentada originalmente e nas versões “enxutas” que se
seguem, de mais uma iniciativa majoritariamente voltada para conter despesas
públicas a partir da redução de direitos sociais. Nesse contexto, o mercado,
sobretudo financeiro, festeja a possibilidade de engordar superávits e, assim,
carrear mais recursos para o pagamento da perversa dívida pública.
No final do ano de 2016 e no início deste ano, o discurso
oficial, reproduzido com gosto e ênfase pela grande imprensa, estava centrado
num suposto déficit bilionário das contas previdenciárias. Nas últimas semanas,
o “mote” passou a ser o combate aos “privilégios” dos servidores públicos.
Trata-se de um discurso falacioso que procura dialogar com mitos e o
desconhecimento de quase toda a população acerca das características básicas
dos diversos regimes previdenciários existentes.
O editorial do Estadão do dia 10 de novembro, denominado “A
reforma da igualdade”, sintetiza a linha central do mais novo discurso
governamental e da grande imprensa. Afirma: “O servidor público tem um
tratamento acintosamente mais vantajoso do que o trabalhador do setor privado.
(…) É gritante, por exemplo, a diferença entre os limites máximos de cada
aposentadoria. No Regime Geral de Previdência Social (RGPS), o teto atual é de
R$ 5.578. Já o valor máximo que um servidor público pode receber de aposentadoria
é R$ 33,7 mil, seis vezes mais que o teto da aposentadoria do trabalhador
privado”. Sintomaticamente, não há uma mísera palavra acerca de como se
processam as contribuições para os dois regimes destacados (o geral e o do
servidor público). Parece que tudo é igual no lado da contribuição (todos
contribuem de forma igualitária) e impera a mais deslavada diferença, o cúmulo
dos privilégios, no lado do recebimento das aposentadorias.
É preciso registrar, já que o governo e a grande mídia não o
faz, que:
a) as últimas reformas previdenciárias promoveram a
convergência dos regimes geral (do trabalhador do setor privado) e próprio (do
trabalhador do setor público federal). O teto para pagamento de benefícios é o
mesmo. As regras de cálculo da aposentadoria também são as mesmas. Os direitos
à paridade e integralidade dos servidores públicos deixaram de existir;
b) o servidor público federal mais antigo, beneficiário dos
direitos a paridade e integralidade, paga contribuição previdenciária sobre a
totalidade da remuneração percebida (e não sobre o teto do regime geral).
Assim, um servidor público com remuneração de 15 mil reais recolhe mensalmente
cerca de 1.650 reais de contribuição previdenciária. Já um trabalhador do setor
privado com a mesma remuneração, recolhe mensalmente cerca de 608 reais para a
previdência social;
c) a aposentadoria do servidor público já está submetida a
idades mínimas. Com efeito, o homem precisa ter 60 anos de idade e 35 de
contribuição e a mulher, 55 anos de idade e 30 de contribuição. Essas
definições valem para todos que se tornaram servidores públicos a partir de
1998;
d) o servidor público federal inativo e seu pensionista
pagam contribuição para a previdência. Esse recolhimento não existe no regime
geral (para o trabalhador do setor privado);
e) o servidor público, por ocasião da aposentadoria, não
recebe valores depositados em conta do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
(FGTS). Já o trabalhador do setor privado saca os valores do FGTS quando da
aposentadoria;
f) a Emenda Constitucional n. 20, de 1998, ao introduzir o
art. 249 no texto da Constituição, estabeleceu a possibilidade de criação de
fundos para assegurar recursos para o pagamento de proventos de aposentadoria e
pensões concedidas aos respectivos servidores e seus dependentes. A União não
criou esse fundo e deixa, por consequência, de fazer os aportes de sua
responsabilidade.
É preciso assinar, ainda, que o regime próprio dos
servidores públicos, em função das mudanças realizadas nas últimas reformas,
ingressou num quadro de equilíbrio. O relatório de auditoria produzido no
Processo TC-001.040/2017-0, pelo Tribunal de Contas da União (TCU), confirma o
equilíbrio do regime próprio do servidor público federal. O Procurador do
Ministério Público junto ao TCU, Júlio Marcelo de Oliveira, afirma, acerca do
referido relatório: “Já os regimes previdenciários dos servidores públicos
civis e militares da União não apresentam trajetórias de crescimento em relação
ao PIB, tanto em relação aos valores passados quanto em relação aos projetados.
Ao contrário, apresentam trajetórias de declínio lento e gradual, a indicar que
as duas reformas já realizadas estancaram pelo menos o crescimento do déficit.
(…) a dinâmica atual de contribuições, ingressos e aposentadorias já não é
geradora de déficit. Ao contrário, o déficit tem-se reduzido ano a ano, como
demonstra o levantamento feito pelo TCU” (https://goo.gl/rhJbzE).
Observe-se, com atenção, o noticiário da grande imprensa e o
discurso das principais autoridades governamentais. Eles tratam as finanças
públicas de forma deliberadamente seletiva. Parece que os gastos relacionados
com a máquina pública, com servidores, com agentes políticos e com benefícios
sociais, notadamente previdenciários, e os escândalos de corrupção drenam
praticamente todos os recursos do Tesouro. Entretanto, existe um grandioso
mundo econômico-financeiro escondido dos noticiários e da narrativa
governamental. As grandes questões econômicas e financeiras de um país com o
tamanho e a complexidade do Brasil superam em muito o campo meramente fiscal
(receitas e despesas primárias). Temos, convenientemente escondidos dos olhos e
ouvidos da maioria da população, relevantíssimas realidades monetárias,
cambiais e creditícias, além de importantes aspectos “esquecidos” das questões
estritamente fiscais.
No texto denominado A DESPESA PÚBLICA E SEUS “BOIS DE
PIRANHA”, disponível em <https://goo.gl/LWWnQ4>, foram destacados os
seguintes itens raramente mencionados no debate público sobre a situação das
finanças públicas brasileiras: a) o serviço da dívida pública (juros) de cerca
de 511 bilhões de reais em 2016; b) a sonegação tributária no patamar de 500
bilhões de reais por ano; c) os subsídios de várias ordens concedidos pelo
governo (quase 1 trilhão de reais entre 2003 e 2016); d) as renúncias de
receitas tributárias em conjunto (realizadas e projetadas), entre os anos de
2010 e 2018, alcançarão o montante de aproximadamente 500 bilhões de reais; e)
as reservas internacionais atingem a marca de 380 bilhões de dólares (ou 1,2 trilhão
de reais); f) segundo dados do Banco Central do Brasil, a dívida bruta do
governo geral em dezembro de 2016 significava 4,3 trilhões de reais e a dívida
líquida do setor público, no mesmo momento, cerca de 2,8 trilhões de reais; g)
o volume de “operações compromissadas” (“compra” de dinheiro dos bancos pelo
Banco Central) ultrapassou, em dezembro de 2016, a impressionante cifra de 1
trilhão de reais; h) os bilionários prejuízos com o swapcambial (funciona como
um seguro diante de uma forte alta do dólar) e i) o estoque da dívida ativa da
União, composta por créditos tributários e não tributários não pagos pelos
contribuintes, que atingiu a cifra de 1,84 trilhão de reais ao final de 2016.
A Previdência Social (ou a Seguridade Social), numa visão
ampla e sensata, reclama reformas ou ajustes. Esse movimento envolve a maioria
dos países em função de um saudável incremento da expectativa de vida (ou
sobrevida). A realidade brasileira, conforme vários dados demográficos, integra
esse fenômeno de âmbito internacional. Duas questões, entretanto,
são fundamentais num processo de alteração das regras previdenciárias: a) até
que ponto as reformas são necessárias e b) a partir de que ponto as mudanças
são excessivas e representativas de desnecessárias fragilizações de direitos
(abrindo espaço para a atuação de poderosos interesses da previdência privada).
Assim, a discussão em torno das mudanças previdenciárias
necessárias, no regime geral (dos trabalhadores do setor privado) e no regime
próprio (dos trabalhadores do setor público), pode e deve ser conduzida de
forma ampla, profunda, responsável, respeitosa e sem açodamentos. Ademais,
precisa ser posta como uma parte do debate mais amplo em torno de uma política
econômica voltada para a construção de uma sociedade livre, justa, solidária,
com erradicação da pobreza, da marginalização e redução contínua das
desigualdades sociais (artigo terceiro da Constituição).
Certamente, neste delicado momento da vida nacional, não é
preciso desencadear uma campanha baseada em mentiras e desqualificações contra
o servidor público, notadamente federal. Esse comportamento das principais
autoridades governamentais bem demonstra o elevadíssimo nível de degeneração
moral e o comprometimento de Suas Excelências com os interesses mais mesquinhos
existentes na sociedade brasileira.
Por Aldemario Araujo Castro
Aldemario Araujo Castro é advogad, mestre em Direito,
procurador da Fazenda Nacional e professor da Universidade Católica de
Brasília.
Fonte: Diário do Poder