BSPF - 04/02/2018
Caso aprovada, a proposta da senadora Maria do Carmo Alves,
do DEM, irá instituir critérios subjetivos de controle e abrir espaço para
abusos de poder
Em sua redação original, a Constituição previa que os
servidores públicos se tornassem estáveis após dois anos de exercício efetivo,
podendo perder o cargo apenas em virtude de procedimento administrativo ou de
sentença judicial transitada em julgado.
A Emenda Constitucional 19, de 1998, ampliou esse período
para três anos e incluiu como hipótese de perda do cargo a reprovação em
procedimento de avaliação periódica de desempenho, a ser disciplinado por lei
complementar (art. 41 §1º III).
O projeto de lei complementar que regulamentaria esse
dispositivo constitucional proposto em abril de 2017 pela senadora Maria do
Carmo Alves (DEM-SE), não é, porém, adequado, pois deixa o servidor público à
mercê de critérios de avaliação excessivamente subjetivos.
Ainda que o substitutivo proposto pelo senador Lasier
Martins (PSD-RS) e aprovado em outubro pela Comissão de Constituição, Justiça e
Cidadania tenha corrigido alguns de seus problemas mais graves (a competência
exclusiva do superior hierárquico para efetuar a avaliação e a possibilidade de
“acordo” entre avaliador e avaliado), o texto aprovado preserva a principal
deficiência do projeto original, a falta de objetividade nos critérios de
avaliação.
O projeto inicialmente apresentado deixava a avaliação de
desempenho a cargo unicamente do superior hierárquico, o que poderia levar a
situações de abuso ou constrangimento, por exemplo, em caso de inimizade
pessoal ou até mesmo de ordens ilegais emitidas pela chefia que o servidor se
sentiria compelido a cumprir.
Caso não concordasse com o resultado da avaliação, eram
poucos os mecanismos de defesa previstos para o servidor. O primeiro deles era
um “pedido de reconsideração” para o próprio avaliador, medida com grande
possibilidade de ser inócua por ser apreciada pela mesma pessoa. O segundo era
um recurso ao “órgão máximo de gestão de recursos humanos”.
O servidor também contaria com um formulário para “avaliação
do avaliador”, com uma garantia formal de sigilo que na prática não ocorreria
nos casos de superiores com poucos subordinados, pois seria fácil reconhecer e
retaliar subordinados que manifestassem insatisfação.
O projeto original previa ainda a possibilidade de acordo
entre avaliador e avaliado quanto ao planejamento das atividades a serem
realizadas, que seria “flexível, permitindo repactuações ao longo do período
avaliativo”, em dispositivo que lembra as ideias que pautaram a reforma
trabalhista aprovada nos últimos meses.
Com o substitutivo aprovado pela CCJ, a previsão de acordo
entre avaliador e avaliado foi suprimida. Obviamente não haveria paridade entre
o avaliado e seu superior hierárquico para acordar livremente, o que se extrai
da própria lei que dispõe sobre o regime jurídico dos servidores federais,
segundo a qual é dever do servidor “cumprir as ordens superiores, exceto quando
manifestamente ilegais” (art. 116 IV Lei 8.112/90).
Ironicamente, a justificativa para a supressão do acordo
parece não ter sido o mero reconhecimento do dado real da ausência de paridade,
o que não ocorreu no caso da reforma trabalhista, mas o receio de que o
subordinado desobedecesse e se recusasse a executar as tarefas determinadas
pela chefia. Consta do parecer do senador Martins que “atos negociais
pressupõem a possibilidade de recusa de uma das partes”, o que não existiria
“no caso da distribuição de tarefas ao servidor público".
De todo modo, o substitutivo eliminou uma das regras mais
nocivas aos servidores, pois o projeto passou a prever que a avaliação não
ficará mais a cargo da chefia imediata, mas de uma “comissão avaliadora”, isto
é, um “colegiado composto pela chefia imediata do avaliado e mais dois
servidores estáveis, um dos quais escolhido pelo órgão de recursos humanos da instituição
e o outro determinado por sorteio dentre os servidores lotados na mesma unidade
do avaliado” (art. 3º).
Contudo, o substitutivo não eliminou o ponto mais
prejudicial que constava do projeto original: a subjetividade dos critérios de
avaliação. A lei proposta faz uma primeira divisão entre fatores avaliativos
fixos e fatores avaliativos variáveis.
Os fatores avaliativos fixos são a qualidade e a
produtividade, e comporão, cada um, 25% da nota atribuída ao servidor. As
definições de qualidade e produtividade não são tão problemáticas, pois até têm
alguma objetividade. Na definição de qualidade, por exemplo, o projeto menciona
a observância às normas e procedimentos da instituição. A definição de
produtividade é mais subjetiva, pois utiliza palavras como “tempestividade”,
“eficiência” e “eficácia”, mas isso também pode ser mitigado com regras
específicas para cada cargo ou órgão.
Os fatores avaliativos variáveis serão cinco, escolhidos
entre os elencados no projeto de lei e aprovados pela “autoridade máxima da
instituição”. Cada critério comporá 10% da nota do servidor.
Os fatores avaliativos variáveis constam do art. 9º do
projeto de lei: relacionamento funcional, foco no usuário/cidadão, inovação,
capacidade de iniciativa, responsabilidade, solução de problemas, tomada de
decisão, aplicação do conhecimento, compartilhamento do conhecimento,
compromisso com objetivos institucionais, autodesenvolvimento e abertura a
feedback.
A cada um desses critérios, o projeto de lei atribui
definições retóricas vagas, que repetem o próprio nome dado ao fator avaliativo
ou utilizam sinônimos desprovidos de significado.
Para dar alguns exemplos: “relacionamento funcional”
significa que “o avaliado cria e mantém vínculos pessoais e funcionais
cooperativos e construtivos”;
"Inovação” quer dizer que “o avaliado propõe ideias
aplicáveis a situações de trabalho”;
“Solução de problemas” é definida como a proposta pelo
avaliado de “soluções consistentes para os problemas enfrentados em situações
de trabalho”;
“Aplicação do conhecimento” significa que “o avaliado aplica
oportunamente o conhecimento adquirido para melhoria do desempenho pessoal e da
equipe”;
“Compartilhamento de conhecimento” significa que “o avaliado
compartilha conhecimentos que possam ser relevantes para o desenvolvimento de
pessoas ou o aperfeiçoamento de atividades”;
“Abertura a feedback” é definida como a utilização pelo
avaliado de “feedback recebido para aprimorar o próprio desenvolvimento pessoal
e funcional”.
Como se pode ver, as definições beiram o ridículo: solução
significa solução, compartilhamento significa compartilhamento, feedback
significa feedback etc. É nos fatores avaliativos variáveis que reside o grande
problema do projeto de lei em sua redação atual. Não se trata de ser contra a
perda do cargo por mau desempenho, tampouco de ser contra a promulgação de lei
complementar que defina o procedimento de avaliação periódica conforme
determina a Constituição. Trata-se de ser contra o projeto de lei em sua
redação atual.
Embora o substitutivo aprovado seja consideravelmente melhor
que o projeto inicial (por eliminar a competência exclusiva do superior
hierárquico para a avaliação e o “acordo” entre avaliador e avaliado), o texto
atual ainda contraria o princípio da impessoalidade na administração pública ao
vincular 50% da nota atribuída ao servidor a fatores avaliativos tão vagos e
subjetivos que sua regulamentação se torna tarefa muito difícil ou praticamente
impossível.
Por Sergio Tuthill Stanicia
Sergio Tuthill Stanicia é Doutor em Direito pela USP
Fonte: CartaCapital