Jota - 11/03/2018
Congresso deve derrubar o desastroso veto presidencial ao PL
3.831/2015
Ao final do ano de 2017, o Congresso Nacional concluiu a
aprovação do Projeto, de autoria do Senador Antônio Anastasia, que visa a
estabelecer normas gerais para a negociação coletiva na administração pública
direta, nas autarquias e nas fundações públicas em todos os níveis da Federação
(trata-se do Projeto que tramitou sob nº 3.831/2015 na Câmara dos Deputados,
oriundo do PLS nº 397/2015, aprovado no Senado Federal).
No entanto, o projeto foi inteiramente vetado pelo
Presidente da República, sob os seguintes argumentos: “A proposição legislativa
incorre em inconstitucionalidade formal, por invadir competência legislativa de
estados, Distrito Federal e municípios, não cabendo à União editar pretensa
norma geral sobre negociação coletiva, aplicável aos demais entes federativos,
em violação aos artigos 25 e 30 da Constituição, bem como por apresentar vício
de iniciativa, ao versar sobre regime jurídico de servidor público, matéria de
iniciativa privativa do Presidente da República, a teor do artigo 61, § 1º, II,
‘c’ da Constituição.”
Ambos os argumentos são improcedentes e o equívoco do veto,
se não derrubado, manterá o Brasil como nação extremamente atrasada no que toca
ao reconhecimento e regulação jurídica, no setor público, de um dos mais
importantes instrumentos de consolidação da democracia e da cidadania no
ambiente de trabalho.
Cabe lembrar que no Brasil, até 1988, os direitos de
sindicalização e de greve eram vedados aos servidores públicos da administração
direta e autárquica, como consequência de visão autoritária da relação entre
servidores e poder público, que por longo tempo predominou.
No contexto da redemocratização do país, a Constituição de
1988, pioneiramente, previu que os servidores públicos têm direito de
sindicalização e de greve (art. 37, VI e VII). O texto constitucional não foi
explícito no que toca ao direito de negociação coletiva entre os sindicatos de
servidores e a administração pública.
Em 1992, o Supremo Tribunal Federal declarou
inconstitucional a alínea “d” do art. 240 da Lei 8.112/1990 (estatuto dos
servidores públicos federais), que previa o direito dos servidores à negociação
coletiva. Essa decisão foi expedida com fundamento em visão assentada sobre
pressupostos anteriores à Constituição de 1988 e que com ela não mais se
coadunam, a saber: 1) a automática associação entre regime estatutário e
necessária fixação unilateral de condições de trabalho pelo estado e 2) a ideia
de que a negociação coletiva é algo peculiar aos trabalhadores do setor privado
e que se desenvolve necessariamente sob os moldes da CLT e normas próprias do
direito do trabalho.
Nos anos subsequentes, contudo, importantes fatores vieram a
alterar esse panorama, apontando para a necessidade de revisão desses antigos
parâmetros.
Em 2007, alterando sua orientação jurisprudencial, o STF
determinou que, diante da omissão do Congresso Nacional em regulamentar a greve
no setor público, passaria a matéria a ser regulada pela Lei 7.783/1989, que
dispõe sobre o direito de greve no âmbito privado. Entre as normas dessa Lei,
está previsto que a greve deve ser antecedida pela tentativa de negociação
(art. 3º) e que a sua deflagração pressupõe a existência de instâncias de
representação destinadas à busca de solução negociada para o conflito (art.
5º).
Em 2010, o Congresso Nacional aprovou a adesão do Brasil à
Convenção 151 e à Recomendação 159, ambas da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), relativas às relações de trabalho na administração pública.
Entre outros aspectos, essas normas preveem a negociação como método apropriado
para fixação de condições de trabalho. Em 2013, o Decreto 7.944 promulgou esses
dois textos normativos, concluindo o processo de sua integração ao direito
brasileiro.
Nesse novo contexto, a aprovação do referido Projeto de Lei,
regulando a negociação coletiva, deve ser saudada como importante passo na
superação de antigos modelos autoritários de gestão de pessoal no serviço
público, rumo a parâmetros consentâneos à valorização da democracia e da
cidadania, aspectos preconizados pela Constituição de 1988. Tanto assim é, que
o Projeto aprovado teve amplo apoio de organizações sindicais de servidores
públicos e dos membros do Congresso Nacional, em suas mais variadas matizes
políticas. Vários projetos de lei que tramitavam há anos no Poder Legislativo
foram até mesmo retirados por seus autores, em prol da ampla convergência que
se formou em torno do PL 3.831.
O argumento de que não cabe à União editar norma geral sobre
negociação coletiva é improcedente, pois a matéria pressupõe, sim, tratamento
uniforme em âmbito nacional, no que toca aos aspectos básicos.
Como já salientado, a negociação coletiva é necessariamente
ligada ao direito de greve, seja como meio de evitar a sua eclosão, seja como
instrumento próprio para solucionar a paralisação e suas causas. Ademais, a
greve e a negociação constituem-se em instrumentos inerentes e imprescindíveis
à atuação sindical. Tal como a própria organização sindical, a greve e a
negociação devem ser reguladas, pelo menos em seus aspectos essenciais, por
norma nacional, pois seria absurdo imaginar que cada entidade da Federação
viesse a regular tais matérias de modo inteiramente autônomo para seus
respectivos servidores. Imagine-se cada Estado e cada Município com normas
próprias sobre organização sindical, greve e negociação para seus servidores,
sem que parâmetros básicos nacionais sejam fixados.
Nesse panorama, seria
tamanho o potencial de interferência de cada uma dessas entidades estatais
sobre as organizações sindicais de seus respectivos servidores e sobre os seus
meios de atuação, que o mínimo de autonomia e liberdade sindical poderia ser
facilmente tolhido, no interesse das próprias entidades estatais enquanto
patrões. Além disso, não se pode excluir que servidores de diferentes entidades
sindicais realizem movimentos reivindicatórios em conjunto, em defesa de
interesses comuns (lembre-se que as entidades estatais podem também atuar
conjuntamente, como por meio de consórcios públicos). Se assim ocorresse, como
seriam equacionadas a greve e a negociação coletiva, diante de diferentes
legislações em vigor?
O STF, em diversos julgamentos, já se pronunciou pelo
caráter nacional da lei de greve dos servidores públicos. Por isso, conheceu e
julgou mandados de injunção propostos por sindicatos de servidores estaduais e
municipais contra o Congresso Nacional, nas quais se requeria o reconhecimento
da omissão desse órgão legislativo em regulamentar a greve no setor público. A
aplicação da Lei 7.783/1989 à greve dos servidores públicos, como forma de
suprir a omissão legislativa do Congresso Nacional, foi determinada em três
processos de mandado de injunção, sendo dois propostos por sindicatos de
servidores estaduais e um por sindicato de servidores municipais.¹
Reitere-se que a negociação coletiva é requisito para a
válida deflagração da greve (se frustrado o diálogo) e também meio legalmente
previsto para encerramento da paralisação. Não há como dissociá-la da atuação
sindical que busca evitar e solucionar conflitos e, por isso, também necessita
tratamento em lei nacional.
Outro aspecto importante é que o Estado brasileiro, ao
incorporar ao direito pátrio a Convenção 151 e a Recomendação 159, da OIT,
comprometeu-se junto à comunidade internacional a regulamentar internamente,
entre outros aspectos, a negociação coletiva. Não faz sentido que o cumprimento
desse compromisso fique na dependência da atuação dos vários Estados-membros e
dos milhares de municípios.
Devendo a matéria ser tratada em norma de caráter nacional,
consequentemente não procede o argumento de que haveria iniciativa privativa do
Presidente da República para apresentar projeto de lei sobre negociação
coletiva de servidores públicos. A iniciativa privativa a que se refere o 61, §
1º, II, ‘c’ da Constituição de 1988, somente se refere àquilo que é específico
aos “servidores da União e Territórios”, como expressamente diz o referido
dispositivo constitucional.
Diante, pois, da equivocada postura do Poder Executivo, cabe
ao Congresso Nacional derrubar o veto, para repor o amplo e exemplar consenso
ao qual se conseguiu chegar no Poder Legislativo, democraticamente e sem
qualquer ofensa à Constituição.
¹ O Mandado de Injunção (MI) 670 foi proposto pelo Sindicato
dos Servidores Policiais Civis do Estado do Espírito Santo, o MI 708 foi
proposto pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João
Pessoa e o MI 712 foi impetrado pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder
Judiciário do Estado do Pará.
Por Florivaldo Dutra de Araújo
Florivaldo Dutra de Araújo – Mestre e Doutor em Direito pela
UFMG; Professor de Direito Administrativo na UFMG; Procurador da Assembleia
Legislativa de Minas Gerais