BSPF - 27/09/2019
Logo após a promulgação da Constituição Federal, havia
dúvidas quanto à aplicabilidade do seu art. 37, inciso X, devido a não
existência de uma obrigação específica de revisão. Entendia-se que o
dispositivo não era dotado de aplicabilidade, cabendo aos Poderes,
discricionariamente, encaminhar ou não a proposta legislativa de revisão.
Com o advento da EC nº 19/98 a situação foi alterada pois a
nova redação do artigo tornou-o autoaplicável. Desse modo, por força de norma
constitucional expressa, os servidores públicos federais, estaduais e
municipais têm direito a uma revisão geral remuneratória, anual, isonômica, e
em data-base fixada. A própria Lei de Responsabilidade Fiscal é clara ao
excluir expressamente de seus limites o reajuste geral anual (artigo 22 da LC
nº 101/2000, em seu parágrafo único, inciso I).
O direito se materializa por lei de iniciativa privativa do
Chefe dos respectivos Poderes. Obrigação esta muitas vezes descumprida, sem que
seja possível ao Judiciário o controle direto de tal omissão, pois prevalece o
Princípio da Separação dos Poderes. É o que decidiu o STF, por exemplo, na ADI
2.017/DF.
Todavia, face à omissão estatal quanto ao cumprimento do ato
de início do processo de revisão remuneratória surgem danos. Por decorrência
lógica, deveria o Estado responder pelo ato danoso promovendo a indenização. No
máximo, a discussão deveria referir-se ao seu caráter objetivo ou subjetivo,
face à histórica divergência na matéria. Tudo muito simples. Mas, na prática, o
STF vem decidindo de forma oposta. É o que se observa na deliberação do RE
424.584/MG, de 2009, ou no recente julgamento da Repercussão Geral
565.089-8/SP, em 25 de setembro deste ano. Há outras decisões, mas estas sem
dúvida são as mais impactantes.
O relator deste último caso, min. Marco Aurélio, votou
favoravelmente ao pleito para reconhecer o direito de indenização pela ausência
de revisão geral. Ele iniciou reiterando a necessidade de contínua preocupação
com a efetividade constitucional. A CF não faz diferença entre atos administrativos,
judiciais ou legislativos quando se reporta ao dever estatal de indenizar.
Qualquer ação ou omissão que cause dano pode implicar indenização. O que está
por detrás da argumentação judicial refratária ao pleito é o medo inerente ao
impacto econômico nas contas públicas. E o medo é justificável, pois o quantum
certamente seria elevadíssimo.
Contudo, como bem destacado no seu voto: “não incumbe ao
Poder Judiciário analisar a conveniência dessa ou daquela norma, mas apenas
assentar se determinada pretensão é ou não é compatível com o ordenamento
jurídico.”
Ademais, devem ser diferenciadas as duas formas possíveis de
reajuste: o aumento real e a revisão geral repositória. O aumento real não
possui garantias jurídicas objetivas e autoaplicáveis. Já a revisão geral foi
assegurada pela Constituição (a professora Cynara Monteiro já explicou isso com
lucidez). Então, obviamente, se fosse aumento, não poderia ser dado pelo
Judiciário, que não detém função legislativa.
Todavia, a revisão geral é reajuste objetivo e com
parâmetros possíveis de serem estabelecidos. Tanto é assim que, ao não serem
efetivados, acarretam, indiretamente, a redução real dos estipêndios – o que é
vedado constitucionalmente. A ministra Cármen Lúcia acompanhou o relator, assim
como, posteriormente, ocorreu com Fux e Lewandowski, após anos de espera pelos
intermináveis pedidos de vista.
A surpresa veio de Luís Roberto Barroso, que julgou
improvido o recurso, sob o argumento de que a expressão “revisão geral” contida
no art. 37, inciso X, da CF, trata apenas de uma “verificação”. Instaurou-se
assim, uma discussão original e contrária a tudo o que se entendia do assunto
até então. Assim explicou: “o chefe do Executivo tem o dever de se pronunciar
anualmente e, de forma fundamentada, dispor sobre a conveniência e
possibilidade, ou não, de concessão de reajuste geral anual para o
funcionalismo”.
Por óbvio, a ideia de Barroso é contrária à argumentação
recorrente, mesmo nas decisões negativas do direito. Em suma, a ideia é a
seguinte: não haveria um direito subjetivo ao reajuste; haveria sim um direito
a que o Poder Público apenas “dê uma olhada”, e depois diga se os servidores
devem ou não receber o reajuste segundo a conveniência do Poder Público em
dá-lo a partir das condições concretas vividas. Seria este o sentido e função
da norma constitucional: o dever de as autoridades pensarem a respeito e
tornarem pública a reflexão. A ideia é absurda. Mas convenceu.
Toffoli ainda reforçou os fundamentos da divergência.
Segundo o Presidente do STF, não há densidade na expressão “revisão” e há
limites para a interpretação criativa do Judiciário. Quais limites, não disse,
pois, afinal, a praxe é estabelecê-los quando convém aos julgadores. Reafirmou
que o dispositivo constitucional está vinculado a circunstâncias que não são
típicas da função judicial. E que a revisão depende de um “debate democrático”.
E concluiu de forma apoteótica: o Judiciário deve adotar uma “postura de
deferência” – um argumento interessante se não fosse utilizado ad hoc. Mas o pior
foi ter argumentado com a Súmula Vinculante 37, que trata da proibição de
aumento judicial de remuneração dos servidores por isonomia – um assunto que
não tem nada a ver com o debate.
Fachin seguiu na trilha de seus colegas divergentes, mas de
uma forma sui generis. Reafirmou que “há direito subjetivo plúrimo” dos
servidores. Sustentou que o debate não é sobre a natureza jurídica do direito,
mas sobre as consequências do descumprimento do dever estatal. Numa reviravolta
retórica passou a concordar com Barroso para afirmar que o dever pode ser
cumprido pela autoridade apenas enviando-se uma justificativa de que não é
possível cumprir o dever. A ideia é nonsense, e qualquer um pode perceber. Se
fosse só para estabelecer um direito a um “debate democrático” ou a uma
“prestação de contas”, o texto constitucional não afirmaria a mesma data e a
não distinção de índices. A diferença entre a literalidade do dispositivo (bem
como sua intenção) e a decisão do STF é assombrosa, porém proposital.
A tese firmada foi a seguinte: “O não encaminhamento de
projeto de lei de revisão anual dos vencimentos dos servidores públicos,
previsto no inciso X do artigo 37 da Constituição Federal de 1988, não gera
direito subjetivo à indenização. Deve o Poder Executivo, no entanto, se
pronunciar, de forma fundamentada, acerca das razões pelas quais não propôs a
revisão.” Salvo engano, este é um novo instituto jurídico: o “dever de
pronunciamento”. Seria de se perguntar se este “pronunciamento” realmente tem
que vir por projeto de lei, decreto, mensagem... ou poderia ser feito
diretamente pelo Twitter.
A saída adotada pelo STF, “dizer que há o direito, mas que o
direito não é um direito”, é o ápice da retórica ilusionista. Preencher o
conteúdo do termo “revisão”, que historicamente é entendido como um “reajuste”,
para compreender a palavra como um mero “reolhar” é algo surpreendente. Levado
este argumento para outras searas, haveria um novíssimo sistema jurídico a ser
reconhecido no Brasil: o que afirma direitos pela sua negação.
Do ponto de vista do Direito Administrativo esta
fundamentação dos votos divergentes carece de qualquer respaldo lógico. Em
sendo o Estado, a teor do artigo 37, § 6º da CF, responsável pelos danos que
venha a causar, deve a pessoa jurídica de direito público responder
diretamente. É inconteste o reconhecimento atual da possibilidade de
responsabilidade civil por omissão. E ainda que exista controvérsia sobre a
responsabilização por atos legislativos, é predominante a doutrina que a
admite. Na mesma esteira converge a jurisprudência contemporânea, notadamente
do STF, que tem firmado o entendimento de que cabe responsabilidade civil pelo
desempenho inconstitucional da função de legislar. Levado o caso ao Judiciário,
este se mostrou, inicialmente, receptivo a esta argumentação.
O Min. Carlos
Veloso teve a oportunidade de se posicionar sobre o assunto, assim afirmando:
a) não há mais no Brasil espaço para a aplicação da tese da irresponsabilidade
civil do Estado na função de legislar; b) no caso, denota-se “inequívoco dever
de indenizar do Estado”, por omissão do agente público no encaminhamento do
projeto de lei que deve ser de sua iniciativa; c) tal responsabilidade deve ser
objetiva, mediante o reconhecimento de uma omissão sui generis (de seu próprio
ato e não evitação de ato de terceiro); d) o dano é certo, pois não interessa o
quantum (o índice), mas sim a existência de um prejuízo determinável; e) há
precedentes deste tipo de indenização no próprio STF, citando como exemplo o
acórdão no MI 562/RS, julgado em 2003. Enfim, um voto perfeito, inteligente,
coerente e objetivo, proferido no RE 424584/MG.
Em sentido oposto, Joaquim Barbosa foi um dos primeiros a
negar o direito, mas em termos muito distintos da fundamentação mais recente do
STF. Afirmou que a responsabilidade do Estado por ato legislativo seria
excepcional e, no caso, ele não antevia um “dano especialíssimo”, razão pela
qual não haveria motivo para indenizar. Isso não é verdade, mas não vale a pena
discutir o assunto, considerando que os atuais ministros caminharam por
vertentes mais exóticas.
Foram manejados, como bem se sabe, tanto Mandados de
Injunção quanto Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão para admoestar
o Poder Público no sentido de sair da inércia e cumprir o dispositivo constitucional.
Ocorre que, especialmente no caso da Ação Direta de Inconstitucionalidade por
Omissão, nenhuma sanção decorre do processo, sendo o administrador inerte
meramente comunicado de sua falha. Por isso o próprio STF sugeriu o cabimento
da ação indenizatória quando reconheceu a omissão. Vale lembrar: reconheceu a
omissão do “reajuste”, não da “pronunciação”. Defendem tal entendimento autores
de escol tais como Aparecida Vendramel, Maurício Zockun e Luciano Ferraz.
É preciso reconhecer que, por um lado, a ideia do mero
“dever de pronunciação” foi esperta, já que o STF não poderia escancarar no
dispositivo da decisão que o problema é econômico e não jurídico. Ademais, o
STF efetivamente constituiu em mora o Chefe do Poder Executivo em ações
objetivas pretéritas tratando do reajuste em si – e dizendo que ele (o
Judiciário) não poderia determiná-lo. Ora, se fosse uma mera “pronunciação”,
seria possível determiná-la de pronto.
De fato, se há mora, há uma obrigação constitucional
descumprida, ou, então, a decisão do STF seria incoerente. Note-se que a
“exigibilidade” existe na medida em que o artigo 37 da Constituição afirma que
a revisão deve ser anual. Portanto, há termo certo: após um ano, a obrigação já
é exigível. A “inexecução” é certa, pois efetivamente não houve o reajuste e
isso não se contesta. O próprio Estado reconhece esta omissão, sustentando que
ela não é ato ilícito; tratar-se-ia de mera faculdade discricionária. A
“interpelação” seria desnecessária no caso, pois o termo está previsto na
Constituição (período anual). De todo modo, ela foi realizada em vários casos
mediante o ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. E o
Supremo Tribunal Federal efetivamente reconheceu a omissão ao dever. E só há
omissão quando há um ato ilícito. Seria impossível se admitir a existência de
uma omissão, se a atuação fosse de acordo com a lei. Ninguém cogitara, até
então, que seria tão fácil ao Poder Público manter-se na legalidade: bastava se
comunicar.
Dizer que a omissão, então, seria só da “pronunciação” e não
do “reajuste” foi uma jogada de mestre, pois evitou todos estes incômodos
lógico-hermenêuticos. A estratégia, entretanto, não sobrevive a uma análise
mais apurada.
As decisões anteriores do STF que não asseguraram o direito
de exigir o cumprimento da obrigação pelo Estado configuram o próprio
fundamento da reparação do dano. Se o STF garantisse, em suas decisões, o
direito ao percebimento do reajuste, os servidores poderiam ingressar com uma
ação condenatória (ou mesmo executória) de obrigação de fazer e não uma ação
indenizatória. O argumento repetido por Toffoli de que não cabe ao Judiciário
determinar o reajuste é inócuo para sustentar suas conclusões – pois justamente
este é o argumento do pedido de indenização por ato legislativo ilícito.
A prestação do fato tornou-se impossível por culpa do
devedor, devendo este responder por perdas e danos. Ou seja, ao não cumprir com
a sua obrigação constitucional de promover a iniciativa de lei específica para
a revisão, a autoridade pública tornou impossível a concretização de um direito
dos servidores, com a imediata consecução de prejuízos aos mesmos. A
impossibilidade jurídica de obrigar o agente político a praticar o ato não o
exime da responsabilidade pela sua omissão, pelo que, resta configurado o nexo
causal exigível para o direito de reparação. Qualquer outra argumentação não
tem nexo nem respaldo no texto constitucional, surgindo num contexto de
ativismo judicial ilegítimo, pois contrário aos direitos fundamentais. É
reflexo do pragmatismo consequencialista contemporâneo.
Gilmar Mendes compreendeu isso, propondo em seu voto no RE
424584 que é possível a indenização em caso de omissão legislativa e que
realmente o dano é certo. Todavia, paradoxalmente, seu voto acompanhou a
divergência para negar o pleito indenizatório. Asseverou o ministro que a mora
foi declarada pela ADI 2061/DF, relatada pelo ministro Ilmar Galvão (em 2001),
mas fixação de prazo só cabe se for providência de caráter administrativo, não
legislativo. E sem prazo definido, a demora do envio de projeto de lei deve ser
submetida ao crivo da razoabilidade. Mas se subsistir a mora, mesmo depois de
declarada, Gilmar admitiu a indenização, pois “a mera alegação de
discricionariedade no envio de projeto de lei ou de que inexistiu prazo para o
Chefe do Executivo cumprir com o seu dever constitucional não chega ao ponto de
afastar a tese da responsabilidade civil decorrente da omissão legislativa”.
Tal voto é passível de crítica, mas não vem ao caso, pois
Gilmar Mendes mudou significativamente sua visão no julgamento do RE
565.089/SP. É até curioso vê-lo de braços dados com Barroso ao abordar a
questão econômica como fundamento para a negativa do direito. Quem apenas ler a
tese final apresentada e seus argumentos centrais talvez não tenha a exata
compreensão do que foi a discussão, que passou pelos “limites do possível”,
pelo “medo da indexação geral de preços”, e pelo reconhecimento evidente de que
os ministros não estavam limitando-se à interpretação da Constituição. O
objetivo era a compatibilidade da norma com a realidade econômica. Ou seja, a
ideia dos legisladores “não provou bem”, conforme disse Barroso.
Então, na prática, o STF resolveu corrigir o erro
político-democrático consagrado na Constituição por intermédio de seu poder
iluminista-jurídico na forma, político no conteúdo e econômico na legitimação.
Por Emerson Gabardo - vice-presidente do Instituto
Brasileiro de Direito Administrativo; professor de Direito Administrativo da
PUC do Paraná e da UFPR; doutor em Direito do Estado, tendo feito seu
pós-doutorado em Direito Público Comparado na Fordham University School of Law.
Fonte: Consultor Jurídico