Carlos A. B. Góes
Valor Econômico - 07/08/2012
No último mês, notícias sobre mobilizações de greves
nacionais ocuparam lugar de destaque na imprensa. Os professores e técnicos das
universidades federais interromperam seus trabalhos. O mesmo ocorreu com os
servidores do ensino técnico e tecnológico. Até mesmo os funcionários do
Itamaraty - assistentes e oficiais de Chancelaria e alguns diplomatas - que
tradicionalmente não entram em greve cruzaram os braços.
O aumento no número de greves de servidores públicos é um
fenômeno generalizado no país. Segundo dados do Dieese, entre 2007 e 2011 as
greves no setor público aumentaram 138%. Seria de se esperar que essa diferença
fosse explicada por uma estagnação nos salários do funcionalismo público num
passado recente. Entretanto, uma análise desses números nos mostra que o
salário real dos funcionários públicos - isto é, já corrigido pela inflação -
aumentou 28,2% desde 2003, com uma aceleração a partir de 2005.
Remuneração dos funcionários públicos aumentou 28,2% desde
2003, e acelerou mais a partir de 2005.
Contra-intuitivamente, períodos de aumentos significativos
no salário real foram seguidos de um crescimento no número de greves. Ao invés
de uma curva de satisfação e acomodação com os ganhos reais, a forte correlação
entre o número de greves que se seguem a períodos de aumento no salário real
parece apontar para uma curva de aprendizado: como se os sindicatos percebessem
que sua estratégia está funcionando e intensificassem suas ações em busca de
ganhos ainda maiores.
Esse fenômeno vem criando uma distorção entre os níveis de
ganho salarial entre os setores público e privado da economia. No setor
privado, os aumentos no salário real estão limitados pelos ganhos de
produtividade (em economês, limitados pelo "produto marginal do
trabalho") e pelo poder de barganha de firmas e sindicatos na negociação
salarial. No setor público a medida de produtividade não é objetiva e a relação
entre o empregador - o governo - e os sindicatos tem idiossincrasias políticas
mais complexas. Em contraste com os 28,2% de ganhos reais no setor público
citados acima, desde 2003, os salários reais no setor privado cresceram 6,9%.
Isso significa dizer que o crescimento relativo dos rendimentos reais do setor
público foi quatro vezes maior que o do setor privado.
Tal situação se torna um problema quando se considera que os
salários do setor público, ao começo da década, já eram maiores que os do setor
privado. Como a maior parte da população é remunerada no setor privado, isso
significa que o funcionalismo público tem tornado-se cada vez mais parte da
elite econômica. Por exemplo, o Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior (Andes) reivindica em suas negociações de greve
um salário mensal de R$ 22.633,92 para professores titulares das universidades
federais. Se os salários reinvindicados se tornarem realidade, isso significará
que esses professores terão uma renda maior do que a de 99,5% da população
brasileira. Com toda a deferência necessária à nobre arte do magistério, a
transferência de renda para aqueles que constituem 0,5% mais abastado do país
parece difícil de ser justificada como objeto de qualquer política pública.
O hiato entre a renda média do funcionalismo público e a
renda média dos demais trabalhadores brasileiros tem aumentado fortemente na
última década. Tomando como base dados da Pesquisa Mensal de Empregos do IBGE,
é possível verificar que, durante o ano de 2003, um funcionário público ganhou
mensalmente, em média, R$ 602 a mais que um trabalhador do setor privado. Já em
2011, essa diferença aumentou para R$ 1164. Além disso, estudo recente da
PUC-Rio aponta que, quando considerados salários e rendimentos com
aposentadorias, a vantagem para o funcionalismo público torna-se prevalente
para todos os níveis de escolaridade - de trabalhadores sem educação formal
àqueles com pós-graduação. Como os funcionários públicos ganham mais que a
média, o aumento dessa diferença constitui objetivamente uma política de
concentração de renda.
A atual tendência funciona como forte atrativo para que mais
pessoas saiam do setor privado e busquem os maiores salários e benefícios do
setor público. Segundo a Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos
(Anpac), associação formada por cursos preparatórios para concursos, cerca de
11 milhões de pessoas se candidataram a vagas no funcionalismo público em 2011.
E, julgando pela atual conjuntura, não existe perspectiva de mudança nesse
cenário. À medida que os trabalhadores mais capacitados deixam o setor privado,
menores tenderão a ser, no longo prazo, as perspectivas de crescimento da
produtividade da economia.
Não há dúvidas de que o país precisa de funcionários
públicos capacitados e justamente remunerados que ajudem a minimizar as
ineficiências da gestão governamental e combater a corrupção. Contudo, é
difícil argumentar em favor de salários ainda maiores para um funcionalismo
público que ganha, na média, quase 75% mais do que o resto da sociedade que o
sustenta. Uma radiografia dos salários no setor público revela, portanto, uma
política que concentra renda, drena talentos dos setores produtivos e, por
questões políticas, garante aumentos reais maiores do que os ganhos médios de
produtividade do país - minando as bases de seu crescimento no longo prazo.
Carlos A. B. Góes é pesquisador de economia latino-americana
vinculado à Universidade John Hopkins.