segunda-feira, 19 de setembro de 2016

42 mil servidores são candidatos remunerados


Vera Batista
Correio Braziliense     -     19/09/2016




Legislação permite que funcionários públicos se licenciem, por três meses, recebendo salário integral, para concorrer a cargo eletivo. Em todo o país, há denúncias de fraudes, inclusive, de inclusão de mulheres concursadas para o cumprimento de cota partidária

A cada pleito, se amontoam nos tribunais do país processos contra servidores federais, estaduais e municipais com candidaturas fictícias apenas para usufruir da licença remunerada assegurada em lei - de três meses, com direito à salário integral. Caso sejam eleitos vereadores, têm direito a acumular os dois salários durante o mandato; como prefeito, será necessário fazer uma escolha entre a remuneração de servidor ou a do executivo municipal.  Atualmente, cerca de 42 mil funcionários públicos concorrem ao pleito, 8,2% do total. Em 2012, eram 7,93%.

Pelos cálculos da professora Mônica Caggiano, especialista em direito constitucional da Universidade de São Paulo (USP), apenas 1% desses candidatos se elege. O objetivo da legislação, que segundo ela, é de incentivar o exercício da cidadania, foi desvirtuado e vem sendo usado como brecha para benefícios pessoais. Se a prática era corriqueira no passado, as perspectivas futuras tendem a ser piores. A recente mudança na lei eleitoral, com a intenção de ampliar direitos e modernizar o pleito, começa a ser alvo dos fraudadores.

Uma nova forma de trapaça está se delineando em cidades do interior do país. O movimento foi identificado pelo especialista em direito eleitoral Marcelo Gurjão Silveira Aith, sócio da Aith Advocacia. Ele explicou que, em 2009, houve uma alteração na lei, para exigir dos partidos, que, no mínimo, 30% das vagas fossem preenchidas por mulheres. Em 2012, o percentual de candidatas já ultrapassava os 32,5% do total e, em 2016, está em 31,6%, segundo dados do sistema DivulgaCandContas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

"A medida é muito importante e os números seriam espetaculares, se correspondessem à realidade. Acontece que, para cumprir a cota, os políticos de cidades pequenas - entre 4 mil a 6 mil habitantes - praticamente obrigam as servidoras a se candidatarem. Como são mães, esposas e ainda trabalham, não querem mais esse encargo. Somente emprestam o nome. Usam o tempo fora do trabalho em outras atividades e acabam sendo denunciadas", contou.

Sigilo

Aith tem clientes de ambos os gêneros em cerca de 20 dessas pequenas localidades e mais de uma dezena de ações que correm em sigilo. "A atual eleição teve um prazo curto, de 45 dias, mas os envolvidos confessam que não têm outra alternativa e que continuarão de alguma forma usando essa estratégia com o público feminino", destacou o advogado. É menos comum do que se imagina encontrar servidores nas chamadas "férias eleitorais".

Em Sarutaiá, no sudoeste de São Paulo, em 2012, um candidato a vereador, cliente de Marcelo Aith, teve que devolver as três parcelas de R$ 1,2 mil que recebia da Prefeitura, "porque tudo que ele fez foi não fazer campanha", ironizou. Há outros casos semelhantes. O ex-procurador eleitoral do Distrito Federal Osnir Benice testemunhou um deles, em 1994, quando atuava em Rondônia. "Um servidor do Ministério da Educação se afastou como se fosse disputar a eleição, mas na realidade foi trabalhar em uma universidade particular ganhando salário. A fraude foi denunciada e comprovada por meio de documentos de prestação de serviço que ele assinou. Foi demitido", lembrou Benice.

Grande parte dos servidores, segundo a advogada Mônica Caggiano, se arrisca por dois motivos: para ter férias suplementares remuneradas ou trabalhar para um outro candidato. Ela concordou com o colega Marcelo Aith, na percepção de que a obrigação de 30% de mulheres na lista é difícil de ser conseguido. "Isso faz com que os partidos políticos apresentem listas fantasmas. É importante destacar que os tribunais eleitorais e o Ministério Público estão atentos a isso, especialmente agora, em 2016. Movimentos feministas também atuam no sentido de exigir campanhas de conscientização e recursos suficientes para tirar as mulheres das sombras e dos bastidores do poder", disse Mônica.

Proteção

Em alguns casos, a lei concede ao servidor até seis meses de desincompatibilização remunerada - quando ele desempenha atividades fiscais. "Não é um benefício. É uma obrigação para que ele não faça uso do cargo para cabalar votos", explicou Marcos Santos, do escritório Cassel Ruzzarin Santos Rodrigues Advogados.

Com os trabalhadores da iniciativa privada acontece diferente. No máximo, podem suspender, sem vencimentos, por um período, o contrato de trabalho. "Ocorrendo necessidade do afastamento do empregado para tal fim (eleitoral), caberá à empresa decidir se vai autorizar a ausência. Ao empregador caberá concordar ou não com o desligamento provisório. É conveniente consultar a norma, convenção ou acordo coletivo da categoria, que vez por outra contém dispositivo a respeito", assinalou o advogado trabalhista Osvaldo Bossolan Neto.

O servidor que não for eleito deve retornar ao trabalho no 11º dia após a eleição. Para o afastamento, basta a prova de uma filiação partidária e, de início, a simples afirmação da intenção de se candidatar. No entanto, nem o afastamento nem a licença remunerada são necessários, quando o funcionário é candidato em local diferente da sede da repartição pública, fora de sua área geográfica de atuação, esclareceu o advogado e consultor Calil Simão.

Em 2005, lembrou ele, foi apresentado o Projeto de Lei (PL) nº 5850, pela Comissão de Legislação Participativa, na tentativa de extinguir a licença remunerada. Mas a proposta foi rejeitada pela Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público (CTASP) e posteriormente pela Comissão de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJC). Acabou sendo arquivada. O senador Ivo Cassol protocolou, em 2012, o Projeto de Lei Complementar nº 302, com o mesmo objetivo. Também não foi adiante.

Para evitar dores de cabeça, ensinou Simão, o trabalhador deve comunicar à administração se a candidatura não for aprovada em convenção, se o registro for negado ou se ele renunciar ou cancelar seu registro. Nesses casos, deve retornar ao trabalho imediatamente. Quanto à fraude, destacou o advogado, geralmente é comprovada por um conjunto de indícios, como depoimento de testemunhas, registro no passaporte indicando viagem ao exterior durante o processo eleitoral, faturas de gastos em outras localidades. Tudo isso aliado ao resultado da votação irrisória, diante da quantidade pequena de votos e de gastos de campanha insignificantes.

Combate

Apesar das fraudes, Simão considera que a licença remunerada, "do ponto de vista da justiça social e do bom senso", deve ser mantida. "Nossos esforços devem ser dirigidos ao combate aos abusos. Nós não podemos, ao deparamos com um benefício ao cidadão, defender a sua extinção em razão do fato de ele ser exercido de forma abusiva, em especial, por ineficiência do Estado em evitar esse exercício abusivo". Para ele, o grande problema do Brasil é que o país ainda é amador na produção legislativa.

Segundo Simão, em 2013, por meio do Instituto Brasileiro de Combate à Corrupção (IBCC),  apresentou proposta ao governo Dilma (Rousseff) de um programa nacional de combate à corrupção, para tornar mais eficiente a tarefa eleitoral. "E novamente repetimos a medida, em 2016, ao governo Temer, pois entendemos que somente com uma articulação geral e não setorial conseguiremos assegurar uma eficiência mínima. O combate às candidaturas fraudulentas reclama ações conjuntas do Tribunal Superior Eleitoral, do Ministério Público e das entidades sociais", reforçou.

"O combate às candidaturas fraudulentas reclama ações conjuntas do Tribunal Superior Eleitoral, do Ministério Público e das entidades sociais"

Calil Simão, advogado e consultor


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