Correio Braziliense
- 22/09/2018
Passar em concurso, quase sempre, significa evitar
preconceitos e resistência dos empregadores na hora da contratação. Para
muitos, além do salário e da estabilidade, implica garantia de ambiente de
trabalho adaptado às necessidades
Um mergulho no litoral paulista, às vésperas do réveillon de
2003, mudou radicalmente os rumos da vida de Danilo Oliveira Freire. Foi na
Praia do Curral, em Ilhabela, que o então estudante de ensino médio bateu a
cabeça em um banco de areia, lesionou a medula na altura da quinta vértebra e
se tornou tetraplégico, perdendo totalmente o movimento das pernas e parte da
força nos braços. “Eu soube no primeiro segundo o que tinha acontecido. Eu
tinha 16 anos”, conta o hoje servidor público.
Danilo, no entanto, não parou. Continuou os estudos, fez
faculdade e começou a atuar como advogado. No entanto, não estava totalmente
satisfeito no escritório em que trabalhava. “A mobilidade interna era possível,
mas não fácil. Eu tentei mudar, mas não consegui, o que acelerou o processo de
estafa mental”, lembra. Foi quando a alternativa do serviço público começou a
atrair o jovem.
Por ser formado em direito e ter trabalhado por vários anos
como advogado, o paulistano escolheu o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP)
como meta e enfiou a cara nos livros. No dia da prova, contou com local de
fácil acesso para cadeirantes, mesa separada da cadeira e auxílio para a
transcrição do gabarito. “Uma dica preciosa é entrar em contato antes com a
banca organizadora e conversar sobre o estacionamento”, aconselha. O tratamento
adequado continuou depois da aprovação, sendo muito bem recebido pelas pessoas
no órgão, apesar de o prédio do tribunal ainda ter o que melhorar em relação à
acessibilidade.
A escolha pelo serviço público, porém, não poderia ter sido
mais acertada, considera. “O concurso público é uma opção muito boa para a
pessoa com deficiência no Brasil. Não só pela remuneração e estabilidade, mas,
sobretudo, pela forma de acesso. Não é fácil passar, mas o fato de a
contratação não depender do aval do contratante é positivo. Toda pessoa com
deficiência sabe o quanto é difícil se inserir na iniciativa privada, por
razões totalmente alheias à qualificação”, avalia Danilo, que considera a
possibilidade de fazer outros concursos futuramente.
Drible no preconceito
Como Danilo, cada vez mais pessoas veem no serviço público a
chance de obter uma vaga sem precisar enfrentar resistências e preconceitos dos
empregadores. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), dos
8.591.446 servidores estatutários no país, 27.832 têm alguma deficiência — a
maioria, 16.829 deles, física. Nos relatos desses profissionais, opiniões
semelhantes à do servidor do TJSP.
“Como servidora, acho que as pessoas me respeitam mais e é
mais fácil conseguir um ambiente de trabalho adaptado, como cadeira e mesas específicas”,
afirma Débora Rocha, servidora do Ministério Público do Trabalho do DF e
Territórios (MPDFT), por sinal, o órgão com mais servidores com deficiência no
Brasil, com 785 trabalhadores. Em seguida, vem o TJSP, a Secretaria de Educação
do Distrito Federal (SEE/DF), o Ministério Público Federal (MPF) e a Secretaria
de Educação do Recife.
Débora sentiu os primeiros sintomas da artrite reumatoide
juvenil (ARJ) aos 8 anos, quando os pés incharam a ponto de ela não conseguir
calçar os sapatos para ir à escola. Com o tempo, a doença crônica afetou também
mãos, punhos e cotovelos, mas não a disposição da jovem, hoje com 33 anos, para
o trabalho e os estudos. Ela se formou em gestão pública e hoje estuda direito.
E, antes de ser aprovada no primeiro concurso, trabalhou com telemarketing,
atendimento ao público e serviço administrativo.
A legislação que obriga empresas maiores a reservar de 2% a
5% das vagas para funcionários reabilitados ou com deficiência a ajudou muito,
mas o preconceito sempre foi um obstáculo. “Já deixei de conseguir vagas por
ser deficiente. A gente acaba tendo que se superar para ser reconhecida. É o
que chamamos de capacitismo. As pessoas acreditam que quem tem deficiência é
inferior, não é capaz”, observa Débora, que está lotada na Promotoria da Pessoa
com Deficiência. Lá, ela coordena um grupo de acessibilidade do MPDFT, que tem
como objetivo conscientizar os servidores sobre a realidade das pessoas com
deficiência.
Autoestima
O capacitismo mencionado por Débora é uma forma de
preconceito bem familiar para Daniela Retori, que, devido a um erro do médico
que fez seu parto, teve o crânio amassado e perdeu parte do cérebro. “Ele
achatou meu cérebro, pescoço, rosto e minha cabeça. Fiquei em coma por 15 dias
e preciso fazer fisioterapia desde os 5 meses”, conta a pedagoga, que tem duas
graduações e três pós-graduações.
Mesmo sendo tão capacitada, Daniela foi preterida por várias
escolas particulares por conta da paralisia cerebral. A saída para exercer a
vocação de educadora acabou sendo o concurso da Secretaria de Educação do
Distrito Federal (SEE/DF). “Primeiro, trabalhei por 20 anos em várias escolas
e, desde 2007, estou no Centro de Ensino Especial 01. Quando passei no concurso
público, tive certeza que queria continuar no CEE 01. A secretaria é uma mãe e,
agora que me tornei efetiva, tenho mais tranquilidade para trabalhar e lidar
com dificuldades, com as minhas limitações. Estou muito feliz”, comemora, com a
confiança de quem nunca deixou sua condição física abalar sua confiança.
“Sofro bullying desde que nasci. Como as pessoas só percebem
que tenho paralisia se me veem andar, acham que não quero fazer algumas coisas
porque tenho preguiça. Outros, quando convivem comigo, têm pena, e isso eu não
quero. Nunca tive baixa autoestima.”
Por Lorena Pacheco