BSPF - 31/01/2019
Os servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai)
divulgaram, nesta terça-feira (28/1), uma carta aberta à sociedade na qual se
posicionam contra as mudanças na política indigenista anunciadas pelo
presidente da República Jair Bolsonaro (PSL).
Os membros do órgão se opõem ao deslocamento da Funai da
área do Ministério da Justiça para o Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos. Também se posicionam contra a retirada de suas atribuições em
questões relativas à demarcação de terras indígenas e ao licenciamento
ambiental que afetem populações e terras indígenas.
Os servidores alertam para o fato de o governo ter mudado de
forma tão radical o sentido da política indígena que era praticada desde a
promulgação da Constituição Federal de 1988 sem que houvesse qualquer diálogo
com a sociedade, com os povos indígenas e com os indigenistas.
Eles alertam para a necessidade de uma política regulatória
do meio ambiente, colocada à prova em fatos como o recente rompimento da
barragem de rejeitos da Vale, em Minas Gerais: “A tragédia testemunhada nesse
momento em Brumadinho, reeditando a tragédia de Mariana, são uma amostra da
importância dos procedimentos e marcos regulatórios no que diz respeito ao meio
ambiente e reforçam a necessidade de fortalecermos as instituições públicas de
controle e fiscalização de obras”, dizem.
Leia a carta aberta:
“Funai inteira e não pela metade
Nós, servidores da Fundação Nacional do Índio (Funai),
reunidos em plenária no dia 29 de janeiro de 2019, vimos a público expor nosso
posicionamento sobre as mudanças na política indigenista realizadas por meio da
Medida Provisória (MP) nº 870, de 1º de janeiro de 2019, bem como Decretos
relativos a estruturas de Ministérios e vinculação de entidades da
administração indireta, conforme tem sido anunciado neste início de nova gestão
no governo federal.
A MP 870, os Decretos já publicados e as declarações dos
novos gestores propõem alterações drásticas na política indigenista, mudando
profundamente seu sentido. Pretende o governo cortar a Funai ao meio:
deslocá-la para o recém-criado Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos (MMFDH) e dela retirar as atribuições referentes à demarcação de terras
indígenas e ao licenciamento ambiental, transferidas para o Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). Anuncia-se também que o Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), agora vinculado ao Mapa,
absorverá parte dessas atribuições, além de servidores de setores inteiros,
acervo documental, bens patrimoniais e orçamento oriundos da Funai.
Entendemos que - e explicamos o porquê - a Funai, enquanto
entidade da administração pública federal indireta, deve permanecer vinculada
ao Ministério da Justiça (MJ), mantendo todas as suas atuais atribuições, bem
como servidores, acervo, patrimônio e orçamento. Nada justifica que se dê um
esvaziamento de competências do órgão indigenista e que isto venha acompanhado
da reconfiguração de sua vinculação ministerial, passando do MJ ao MMFDH.
Do ponto de vista da ordem constitucional brasileira e da
racionalidade administrativa, não há amparo para que duas políticas
fundamentais relacionadas às terras indígenas, a demarcação e o licenciamento,
sejam retiradas da Fundação que tem por finalidade justamente proteger e
promover, em nome da União, os direitos constitucionalmente assegurados dos
povos indígenas. Transferir essas competências ao Mapa é orientar-se pela visão
de que as terras públicas brasileiras devem submeter-se à exploração econômica
privada, sobrepondo-se às políticas que atendem aos interesses públicos. É,
sobretudo, óbvio ululante, colocar direitos sob a tutela daqueles que têm o
interesse manifesto em não garanti-los.
O posicionamento aqui externado foi aprovado de forma
unânime em Assembleia extraordinária da Indigenistas Associados-INA, associação
de servidores da Funai, realizada em 23 de janeiro de 2019. Motivada pela conjuntura
que se instalou após a publicação da MP 870, a Assembleia também deliberou que
a INA recorrerá aos meios que estiverem ao seu alcance para que, no processo de
avaliação da MP pelo Congresso, essas mudanças sejam suprimidas. A presente
carta também foi aprovada em plenária de servidores da Funai, realizada em
Brasília, com participação à distância de servidores de CRs, CTLs e FPEs, em 29
de janeiro de 2019.
Há mais de 300 povos indígenas formados por cidadãos
brasileiros, os quais permanecem atualmente com o usufruto de apenas 13% do
território nacional, protegendo-o. Esses povos são diversos e compreendem o
mundo de formas específicas, em grande medida a partir de um caráter coletivo,
ligado a um território tradicionalmente ocupado. Para eles, a terra e seu
usufruto são indissociáveis: rituais, alimentação, plantio, espiritualidade,
parentesco, tudo intrínseco. Por essa razão, o artigo 231 da Constituição
Federal reconhece as formas de organização social, os costumes e tradições
desses povos. Também por isso a Carta Magna garante o usufruto exclusivo do
território, para que tais povos possam continuar a se reproduzir física e
culturalmente, e para que o Estado brasileiro promova justiça aos nativos deste
país, interrompendo o histórico violento e sangrento da colonização. E é esta a
missão que jamais deverá ser retirada da Fundação Nacional do Índio: promover e
proteger os direitos dos povos indígenas no Brasil.
Defendemos uma Funai inteira e não pela metade, o que inclui
a manutenção de seu vínculo com o MJ. Como detalhado nos tópicos abaixo, esse
vínculo é constitutivo do exercício da política indigenista que se consolidou
no país a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o qual também
depende da atuação integrada entre diferentes setores da Funai, por meio da
técnica do trabalho indigenista e de sua expertise única. Sem os setores
responsáveis pela demarcação e pelo licenciamento, a Funai será enfraquecida e
a execução da política indigenista perderá organicidade.
Carente de racionalidade técnica, a decisão de extirpar a
Funai de uma supervisão ministerial adequada, de atribuições fundamentais, de
setores inteiros e servidores só pode ser o resultado de uma equivocada vontade
de traduzir em termos administrativos ameaças do recente período eleitoral:
paralisar as demarcações; fazer as minorias se curvarem às maiorias; “dar uma
foiçada no pescoço” do órgão indigenista. Contra esse equívoco, capaz de
representar um erro histórico nos rumos da política indigenista nacional, com
consequências sobre o modelo de desenvolvimento social e a imagem internacional
do Brasil, são agora muitos os que felizmente se levantam. Estamos entre estes,
com base no já dito e nos argumentos abaixo apresentados.
Fonte: Consultor Jurídico