BSPF - 31/01/2021
Existem regras previdenciárias destinadas a preservar o
valor das aposentadorias e pensões no futuro. Por vezes, essas garantias são
chamadas de princípios ou direitos, mas a rigor destinam-se apenas a assegurar
no tempo, o valor real de benefícios adquiridos na relação previdenciária e não
a instituir, por si, qualquer benefício. É o caso da paridade previdenciária,
parâmetro de revisão das aposentadorias e pensões alternativo à revisão de
benefícios por índices de medição da inflação. Trata-se de imposição acessória
complexa, com riscos associados e ocultos para os 2 polos da relação
previdenciária (Estado/servidores públicos efetivos). Explorar resumidamente o
alcance dessa garantia, os seus riscos inerentes e os seus destinatários após a
Emenda Constitucional 103/19 é o objetivo das linhas a seguir.
Paridade: garantia material
A paridade previdenciária é garantia constitucional material.
Não estabelece nem requer do legislador procedimento, processo ou providência
institucional específica. Fixa, na forma do antigo §4º do artigo 40 da
Constituição Federal, o dever de proceder à revisão dos proventos e pensões de
servidores efetivos, na mesma proporção e na mesma data, sempre que se
modifique a remuneração dos servidores em atividade, estendendo-se ainda aos
aposentados e aos pensionistas quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente
concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da
transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu a
aposentadoria.
A
garantia da paridade visa inibir e coibir a prática de concessão de benefícios
exclusivamente aos servidores em atividade, seja diretamente (criação de novas
vantagens ou revisão de anteriores) seja indiretamente (mediante
reenquadramentos, reformulação, transformação, fusão e cisão de carreiras), com
alheamento e desconsideração da situação do servidor aposentado. A paridade vincula a despesa de ativos e
inativos de modo estreito e direto.
Paridade e
integralidade complementam-se:
a paridade permite prolongar no tempo o direito à integralidade — fórmula de
cálculo do provento ou da pensão que adota o último valor bruto da remuneração
ou subsídio do servidor ativo na fixação do benefício de inatividade. A
garantia da paridade
(igualdade revisional) entre proventos de inatividade e
vencimentos da atividade confere permanência ao direito à integralidade. Sem a
paridade, o direito à integralidade cessaria no próprio momento da concessão do
benefício previdenciário. Sem a integralidade, a paridade importaria em
igualdade percentual e não em igualdade de valores na revisão de benefícios,
pois não haveria incidência de percentuais sobre as mesmas bases.
Apenas servidores, civis e militares, titulares de
cargo público efetivo, podem manejar a garantia da paridade. Não existe
semelhante critério de revisão no Regime Geral de Previdência Social.
Paridade: garantia sujeita à política de pessoal
No entanto, na dinâmica do direito, a
aplicação desses conceitos nunca foi singela. Pode-se afirmar, sem receio de
erro, que nem a integralidade nem a paridade foram e são aplicadas de forma
plena e admitem exceções importantes, que culminam por conceder ao Poder
Público perigosa flexibilidade na composição e revisão
do valor final dos proventos de titulares de cargo efetivo. A integralidade e a
paridade plenas são, antes de um dado de realidade concreta, um mito1 ou, de forma realista, uma garantia
sujeita à política de pessoal do setor público.
A garantia da paridade assegura a extensão aos
inativos de benefícios concedidos aos servidores em atividade, porém a jurisprudência ressalva desse dever de extensão: 1) as vantagens de caráter pessoal, 2) as vantagens indenizatórias e 3) as decorrentes de atividades específicas, de natureza eventual,
incompatíveis com a situação do aposentado ou pensionista. Essas
exceções podem diferenciar legitimamente não apenas o quanto percebido por
ativos e inativos, mas igualmente valores de retribuição de agentes em
atividade. Exemplo: gratificação de atuação em emergência, deferida a médicos
públicos plantonistas, deve ser paga unicamente a médicos durante o período em
que respondem efetivamente em emergências de postos de saúde e hospitais, não sendo
devida a agentes em atividade diversa, ausente os pressupostos fáticos exigidos
para o gozo da vantagem (v.g., médico em exercício de funções de direção) nem
aos aposentados, salvo hipótese de “estabilidade econômica”. A extensão é obrigatória apenas quando a
vantagem retributiva criada ou elevada exibe caráter genérico.
É dizer: todas as vantagens que revelem caráter
geral, por serem aplicáveis indistintamente aos agentes em atividade da
carreira, com independência do exercício efetivo de alguma atividade especial
ou outra circunstância pessoal, à luz da garantia da paridade devem ser
estendidas imediatamente a todos os inativos correspondentes, sem necessidade
de lei específica, em face do que dispunha o §4º do art. 40 da Lei Fundamental,
na redação original, ou na redação do §8º, do art. 40, segundo a redação
aprovada pela Emenda Constitucional 20/98. Mas se vantagens forem realmente
vinculadas a atividades concretas (pro labore faciendo), específicas, que diferenciam
segmentos dentro da própria categoria dos agentes ativos pelo efetivo
desempenho de função ou tarefa, podem ser recusadas aos inativos, por
inextensíveis ou por não atenderem ao pressuposto fático que as faz incidir2. No caso de gratificações de desempenho, após o
primeiro ciclo genérico de avaliação, pode haver descasamento entre a
retribuição do ativo e inativo, sem ofensa ao princípio da irredutibilidade
(STF, Repercussão Geral, Tema 983)3.
Em outro dizer: embora dificulte abusos, a paridade não impede o descasamento
entre a retribuição do servidor ativo e o benefício do inativo, nem inibe a
criatividade do legislador em matéria de retribuição, sobretudo na modalidade
remuneração (não subsídio). Porém, mais grave ainda: pode importar em
congelamento de proventos e pensões, com perda do poder de compra do agente
inativo, quando ocorra ausência de correção de vencimentos ou revisões abaixo
da inflação no serviço ativo em determinado período. O aposentado vincula-se à
política de pessoal em atividade de forma solidária, isto é, compartilha as
alegrias e infortúnios da revisão dos vencimentos e subsídios dos servidores em
atividade.
Esse fato provoca fenômenos interessantes. Um dos
mais curiosos é o incentivo à participação de aposentados na deflagração de
greves no setor público. Em 2002 publiquei na Folha de S.Paulo artigo com o
título “Aposentados e... em greve”, no qual já identificava o problema e
interrogava:
“Os servidores públicos ativos em greve, se titulares
de cargo público, não fazem jus à retribuição durante o movimento grevista.
Servidores em estágio probatório deixam de computar esse período no processo de
aquisição do direito à estabilidade. Porém, os servidores aposentados em cargos
públicos efetivos com direito à paridade nada perdem com movimentos paredistas
prolongados. Votam sistematicamente nas assembleias pela radicalização dos
movimentos de paralisação. É legítimo que participem de todas as deliberações e
integrem o mesmo sindicato? Aposentados do regime próprio dos cargos públicos
apenas podem retornar ao serviço efetivo do Estado mediante aprovação em novo
concurso público. Não é paradoxal que deliberem sobre o retorno à atividade?
Sem riscos ou perdas com a ação paredista, possuem legitimidade para opinar
sobre a continuidade de greves? Ao comparecerem em grande número a assembleias
sindicais, durante greve, podem formar maiorias e vincular os ativos?”4
Para o Poder Público, a paridade é risco e problema,
pois dificulta a concessão de reajustes para segmentos do setor público em face
do elevado número de aposentados (aumenta o impacto) e torna difícil (senão
impossível) a previsibilidade da despesa previdenciária. O valor dos proventos
e das pensões permanece sujeito a oscilações da política de pessoal do Poder
Público, mas essas oscilações ocorrem ao longo do tempo e pode importar em
elevação dos valores de proventos e pensões acima da reposição da inflação (como
entre 2003 e 2014) ou abaixo da reposição da inflação (como, em regra, ocorre
desde 2017).
Paridade: garantia em extinção
A extinção da integralidade e da paridade
figura entre as alterações mais relevantes do regime previdenciário dos agentes
públicos efetivos nos últimos anos. Como regra permanente, a paridade e a
integralidade foram extintas pela EC 41/03. A regra permanente para os
servidores civis desde então segue o critério de reajustamento dos benefícios mediante aplicação de índice
de inflação (atualmente, o INPC - Índice Nacional de Preços ao
Consumidor), de modo a preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real
(art. 40, §8º, CF).
A extinção da paridade ressalvou a situação dos
agentes que ingressaram antes da EC 20/98 e antes da EC 41/03, permitindo a sua
invocação futura, observadas regras de transição previstas nas EC 20/98, EC
41/03, EC 47/05 e EC 103/19. A situação jurídica de transição pode ainda variar
conforme o estágio e a completude da regulamentação da EC 103/19 em Estados, no
DF e nos Municípios.
Paridade: garantia em transição após a EC 103/19
Os servidores efetivos que ingressaram
antes da EC 20, isto é, antes de 16/12/98, encontram no art. 3º da EC 47/05
norma especial de transição, que assegura paridade e integralidade na inativação
e para a pensão decorrente (§único do art. 3º). A EC 103/19 revogou essa
disposição para os servidores da União, mas a manteve vigente nos estados e
municípios até que “lei de iniciativa privativa do respectivo Poder Executivo” referende de modo integral a revogação dessa
norma e das disposições de transição previstas nos arts. 9º,
13 e 15 da EC 20, de 15/12/98 e nos arts. 2º, 6º e 6º-A da EC 41, de 19/12/03.
Enquanto não há essa revogação expressa na lei fundamental dos entes federativos aludidos,
uma vez que essas normas eram de reprodução obrigatória na Federação e possuíam
status constitucional antes da EC 103/19, esses agentes mais
antigos podem invocar o art. 3º, da EC 47/05, desde que preencham as seguintes
condições de elegibilidade: 35 anos de contribuição, se homem, ou 30 de
contribuição, se mulher; 25 anos de efetivo exercício no serviço público; 60
anos de idade, se homem; 55 anos de idade, se mulher; 15 anos na carreira e 5
anos no cargo em que se der a aposentadoria. Poderão também, na forma do inciso
III do mesmo artigo, reduzir a idade mínima referida na proporção de um ano por
cada ano de contribuição que exceder o período de contribuição exigido (35
anos/30 anos).
De igual modo, nos estados e municípios que não
tenham referendado integralmente a revogação das disposições transitórias
aludidas, será possível aos servidores civis com ingresso após a 16/12/98 e
empossados até 19/12/03 (EC41/03), invocar a garantia da paridade, com base no
artigo 6º do EC 41/03, porém sem possibilidade de redução da idade mínima por
período excedente de contribuição, cumpridos os seguintes requisitos: 60 anos
de idade, homem; 55 de idade, mulher; 35 anos de contribuição, homem; 30 anos
de contribuição, mulher; 20 anos de efetivo exercício no setor público; dez
anos na carreira e cinco anos no cargo em que se der a aposentadoria.
Por fim, para os servidores federais, a própria EC
103/19 estabelece duas normas de transição que ainda asseguram a paridade e
integralidade para os servidores com ingresso no serviço público até 31/12/03 e
não tenham optado pelo novo regime previdenciário com limitação ao teto do RGPS
e realizado a adesão à previdência complementar: art. 4º, caput, §6º, I, e §7º,
I, e art. 20, caput e inciso I.
Pela primeira disposição, são exigíveis as seguintes
condições: 62 anos de idade, se mulher; 65 anos de idade, se homem (se
professor do ensino infantil, fundamental e médio, 57 anos de idade, se mulher;
60 anos de idade, se homem); 30 anos de contribuição, se mulher; 35 anos de
contribuição, se homem (se professor, 25 anos de contribuição, se mulher, 30
anos de contribuição, se homem); 20 anos de efetivo exercício no serviço
público para ambos os sexos; somatório de idade e do tempo de contribuição,
incluídas frações, equivalente a 86 pontos, se mulher, e 96 pontos, se homem,
com acréscimo, a partir de 1º de janeiro de 2020, de 1 ponto a cada ano até
atingir o limite de 100 pontos, se mulher, e de 105 pontos, se homem. Para
professores, a soma de pontos inicia com 81, se mulher, e 91 pontos, se homem,
aos quais serão acrescidos, a partir de 1º de janeiro de 2020, 1 ponto a cada
ano, até atingir o limite de 92 pontos, se mulher, e de 100 pontos, se homem.
Nos termos da segunda disposição transitória (art.
20, caput e inciso I, da EC 103), são condições exigíveis: 57 anos de idade, se
mulher; 60 anos de idade, se homem; 30 anos de contribuição, se mulher; 35 anos
de contribuição, se homem; 20 anos de efetivo serviço público e 5 anos no cargo
efetivo em que se der a aposentadoria; acrescido do período adicional de
contribuição (“pedágio”) equivalente a 100% do tempo que, na data de entrada em
vigor da EC 103, faltaria para atingir o tempo mínimo de contribuição exigido.
Há redução de 5 anos na idade e no tempo de contribuição para o professor que
comprovar exclusivamente tempo de efetivo magistério na educação infantil e no
ensino fundamental e médio. Essa norma não contempla crescimento anual de
pontos (soma da idade com tempo de contribuição). Por igual, essa regra
aplica-se ao servidor efetivo federal com ingresso até 31/12/03 e que não tenha
realizado a opção pela previdência complementar. Os pensionistas desses
aposentados, nas duas disposições da EC 103, não preservam o direito à
integralidade e paridade e seguem as regras vigentes por ocasião do falecimento
do segurado instituidor (princípio tempus regit actum).
Há situações especiais que aqui não são abordadas por
falta de espaço, como a situação dos policiais federais (com ingresso antes da
EC 103 e regra de transição específica) e dos servidores públicos com direito à
aposentadoria especial por exposição a agentes prejudiciais à saúde. Deixa-se
de referir também a situação dos militares, cuja reforma impacta as despesas
públicas de forma crescente e que mantiveram, em termos gerais e permanentes, o
direito à integralidade e paridade.
O futuro dirá se a paridade permanece uma garantia ou
terá se convertido numa ilusão. As restrições orçamentárias definirão os
limites da política remuneratória do setor público nos próximos anos e podem
sinalizar que se apostou no “auto-engano” (EDUARDO GIANNETTI). E, talvez, não muito
longe, seja preciso dizer adeus ao objetivo de perseguir a paridade e reduzir o
risco para ambos os polos da relação previdenciária. Bem diz CARLOS AYRES
BRITTO, com a clareza de poeta-ministro: “Preciso dar adeus à ilusão / Sem
deixar de subir as encostas da vida. / Digo melhor: /Preciso dar adeus à
ilusão, Pra poder começar a subir/ As encostas da vida. /Pois subir as encostas
da vida/ Nas asas da ilusão/Não é subir: É dar as costas à vida”.
Por Paulo Modesto -
Professor da Faculdade de Direito da UFBA (Universidade Federal da Bahia),
presidente do Instituto Brasileiro de Direito Público e membro do Ministério
Público da Bahia e da Academia de Letras Jurídicas da Bahia. Publicado
originalmente no portal Conjur (Consultor Jurídico)
Notas
1 MODESTO, Paulo. Reforma da Previdência e
Regime Jurídico da Aposentadoria dos Titulares de Cargo Público. In: MODESTO,
Paulo (org). Reforma da Previdência: análise e crítica da emenda constitucional
n. 41/2003. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 42-46.
2 Cf., entre muitos, STF, RE-170020/SP,
Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI, DJ 19/06/1998, 1a. Turma; ARE 958044 AgR, Rel. Min.
ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, DJe 14/11/2017; RE 970154 AgR, Rel.Min.
RICARDO LEWANDOWSKI, 2a.Turma, DJe 30/08/2017; ARE 947693 AgR, Rel. Min. DIAS
TOFFOLI, 2ª.Turma, DJe 20/10/2016; RE 590260, Tribunal Pleno, Rel. Min. Min.
RICARDO LEWANDOWSKI, DJe 23/10/2009.
3 Cf. STF, ARE 1052570, Relator: MIN. ALEXANDRE
DE MORAES, DJE 08/05/2018 - ATA Nº 63/2018. DJE nº 88, 07/05/2018.
4 Cf. MODESTO, Paulo. “Aposentados
e... em greve”. Folha, Opinião. 28.08.2012. Disponível em: https://bit.ly/36jFDqI e também em https://bit.ly/2Ymyj95
Fonte: Agência DIAP