Almir Pazzianotto Pinto
Estado de S. Paulo
- 24/06/2015
A greve foi uma das últimas entre as mais importantes
conquistas das classes trabalhadoras. Três livros são fundamentais para
conhecer a lenta evolução dessa poderosa ferramenta, sem a qual os sindicatos e
a negociação coletiva perdem eficácia. Refiro-me a História dei Primero de
Mayo, de Maurice Dommanget; Evolución de la Clase Obrera, de Jürgen Kuczynski;
Greves de Ontem e de Hoje, de Georges Lefranc. Entre os brasileiros, destaca-se
a obra de Everardo Dias, História das Lutas Sociais no Brasil. Igual relevância
tem o capítulo referente aos conflitos entre capital e trabalho do Tratado de
Sociologia de Trabalho, de Georges Friedman e Pierre Naville.
No Direito brasileiro, o exercício da greve só adquiriu
maioridade com a Constituição de 1988. Até então submetido a rigorosas
exigências legais, ele sofria incessante combate do governo. Prova disso eram
as habituais sentenças de ilegalidade, seguidas por intervenções, cassações e
prisões de dirigentes.
Empenhada em garantir conquistas até então inéditas, a nova
Constituição dedicou ao direito de greve dois dispositivos: o artigo 9.0,
aplicável às relações de trabalho no âmbito da iniciativa privada, de imediato
regulamentado pela Lei n.° 7.903/89; e o inciso II do artigo 37, que, para
completar a garantia de livre sindicalização, o estendeu aos servidores
públicos, porém "nos termos e nos limites definidos em lei
específica".
Embora admitidos na esfera da iniciativa privada e na
administração pública, são direitos visivelmente distintos. Na órbita das
relações coletivas, a greve goza de ampla liberdade, exceto em serviços e
atividades essenciais, correspondentes às "necessidades inadiáveis da
comunidade", conforme artigo 11 daquela lei. Como tal se entendem as que,
desatendidas, ponham "em perigo eminente a sobrevivência, a saúde ou a
segurança da população".
Assistência médica e hospitalar, transporte público, controle de tráfego aéreo e compensação bancária são algumas atividades cuja paralisação causa graves transtornos aos usuários. Segundo a Constituição, greve em serviço essencial atrai pronta intervenção do Ministério Público, cabendo ao Judiciário trabalhista encerrar o conflito sem exame das reivindicações, o que nem sempre acontece.
Assistência médica e hospitalar, transporte público, controle de tráfego aéreo e compensação bancária são algumas atividades cuja paralisação causa graves transtornos aos usuários. Segundo a Constituição, greve em serviço essencial atrai pronta intervenção do Ministério Público, cabendo ao Judiciário trabalhista encerrar o conflito sem exame das reivindicações, o que nem sempre acontece.
Na administração pública a greve é direito retido.
Falta-lhe, para regular exercício, a lei específica cobrada pelo referido
inciso VII do artigo 37. Trata-se, no jargão jurídico, de prerrogativa em
estado latente, inerte, apesar de transcorridos quase 27 anos desde que foi
concebida no ventre da Assembléia Nacional Constituinte.
Para a empresa a parede faz parte do mundo real, do dia a
dia, com a qual se defronta habitualmente. O desligar das máquinas afeta de
imediato a produção. A mercadoria deixa de sair, o dinheiro para de entrar e as
perdas não se resumem aos lucros, mas atingem a própria essência do negócio.
Servidores remunerados com dinheiro do contribuinte não
deveríam ter direito à paralisação. O orçamento público não pode ser mera peça
de ficção, sujeito a oscilações de acordo com a pressão das massas. Reparar o
equívoco da Assembléia Constituinte parece-me impossível. Poderá ele, todavia,
ser atenuado por lei que lhe imponha limites rígidos - e exclua serviços que
jamais, e por nenhum motivo, poderão ser interrompidos.
Não deveríam ter direito à paralisação servidores pagos com
dinheiro do contribuinte
Na iniciativa privada a greve afeta o dono; no serviço
público, alcança a população. Interrompe atividades essenciais às camadas
populares: educação, hospitais - municipais, estaduais e federais atendimento
judiciário, segurança pública, Previdência Social, transportes coletivos.
O direito de greve deve ser interpretado por ângulos
distintos: o de quem o exerce e o de quem o sofre. Na órbita privada, afetado é
o empregador que se recusou a negociar, negociou mal ou se revelou disposto a
correr os riscos do prejuízo. No setor público, atingido é o povo, nas camadas
mais necessitadas.
A inexistência da lei específica é produto do descaso de
sucessivos presidentes da República e da apatia dos partidos políticos. Ao
chefe do Poder Executivo, e apenas a ele, compete a iniciativa do projeto,
conforme prescreve o artigo 61,§ 1º, II, c, da Lei Maior. Desde 1988 nenhum
presidente tratou do assunto com a seriedade inerente à matéria.
Com sua história marcada por apego ao tumulto, paralisações
justas e injustas, legítimas e ilegítimas, tranquilas e selvagens, é impossível
imaginar que o Partido dos Trabalhadores (PT) pudesse ser sensível ao caos
provocado pela interrupção de atividades essenciais. Para o partido, greve é
direito irrestrito, sem barreiras e sem pudor, como revelou na paralisação da
Petrobrás em maio de 1995.
Entendo o PT. Não consigo, porém, aceitar o procedimento do
PSDB, que, quando exerceu a Presidência da República, durante oito longos anos,
foi incapaz de imprimir a necessária disciplina à norma constitucional.
Conseguiu ver aprovadas pelo Congresso Nacional emendas constitucionais sobre a
reeleição e a reforma do Poder Judiciário, além de leis complexas e polêmicas,
como a Lei de Responsabilidade Fiscal, mas ignorou a greve no serviço público.
Para dirigentes sindicais de servidores públicos, a greve é
um recurso legal, eis que se encontra inscrito na Lei Fundamental. Fazem-se
esquecidos, no entanto, no que toca à obrigatoriedade de regulamentação. A
milhões de prejudicados resta o tortuoso caminho do Poder Judiciário, no qual
se atropelam decisões conflitantes relativas ao desconto dos dias de
paralisação e à responsabilização civil de sindicatos e de seus dirigentes.
Refém indefesa de constantes greves em serviços públicos
vitais, decretadas por minorias organizadas, a população brasileira permanece à
espera da lei específica que ponha termo ao seu sofrimento.
Almir Pazzianotto Pinto: Advogado, foi ministro do Trabalho
e presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST)