Celia Perrone
Correio Braziliense
- 06/04/2016
Com facilidade para tomar empréstimos consignados, categoria
deve R$ 169,2 bilhões nessa modalidade de crédito. São R$ 15 mil para cada um
dos 11,2 milhões de trabalhadores do setor público no país
Os funcionários públicos estão no limite do
superendividamento. Atraídos pelo crédito fácil, contraem empréstimos que
comprometem quase toda a renda. O consignado deve respeitar o limite de 35% dos
vencimentos com o pagamento de prestações, de acordo com a lei, mas acaba sendo
apenas mais uma entre as várias dívidas que a pessoa tem. Pela facilidade de
concessão, acaba também colaborando para aumentar a pressão nas contas
pessoais.
O volume total de concessões a servidores, atingiu R$ 169,2
bilhões em fevereiro, aumento de 7,4% em 12 meses, de acordo com o Banco
Central (BC). Quando se divide esse total pelos 11,2 milhões de servidores no
país - muitos dos quais não têm qualquer débito - chega-se a uma média de R$ 15
mil. O valor representa quase a metade do teto salarial de R$ 33,7 mil, os
vencimentos do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).
A dívida por trabalhador equivale a cinco vezes o salário
médio de R$ 2,9 mil do servidor. E é praticamente o dobro do que recebe um
funcionário público no Distrito Federal: R$ 8 mil. O volume de crédito
consignado do trabalhador do setor privado é de R$ 18,5 bilhões, 10,9% do
montante dos funcionários públicos.
Ampliação
O governo quer ampliar a participação desse tipo de
financiamento para quem trabalha em empresas, por isso determinou, na semana
passada, por meio de medida provisória, que o Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FTGS) seja usado como garantia para incentivar a modalidade de
crédito. O objetivo é que isso seja feito de forma responsável. Mas o histórico
não é favorável quando se veem casos de vários servidores.
O funcionário da Secretaria da Fazenda do DF Ronildo Alves,
47 anos, é um exemplo típico do drama do endividamento. Ele recebe R$ 7,8 mil
por mês, em valores brutos. Em 2014, depois de se atolar em contas de cartão de
crédito e pagamentos de impostos, fez dois empréstimos no Banco de Brasília
(BRB), no total de R$ 40 mil, na tentativa de pagar juros mais baixos e, assim,
se livrar aos poucos dos débitos. "Não resolveu nada. Continuei no
vermelho e em janeiro passado renegociei um dos empréstimos. Agora R$ 3,8 mil
saem direto do meu salário para o banco: R$ 1,8 mil são descontados no meu
contracheque e o restante, da conta-corrente", disse.
Alves conta que, para prevenir novos descontroles, eliminou
dois cartões de crédito. Mantém só um, com limite baixo. "O máximo de
gastos é de R$ 700, para não eu não me endividar muito", revelou. A saga
de Ronildo não acabou aí. O carro quebrou no mês passado e ele pediu ao banco
para antecipar as férias e o 13º salário. "Fiz um financiamento de R$ 35
mil para comprar um carro 2010 que, no fim, sairá por R$ 57 mil. Mas automóvel
em Brasília é necessidade, não é luxo, com o transporte público que nós
temos", justificou.
O servidor Nelson Vilasboas, de 41, tem renda de R$ 10,5 mil
e pagará R$ 4,4 mil em 45 prestações, por dois empréstimos. "Isso
aconteceu por falta de controle no cartão de crédito, além de problemas de
saúde na família. Sem contar o aumento de preços em todos os produtos, muito
além do que aparece nos índices oficiais de inflação", explicou.
Descontrole no cartão de crédito também foi o motivo que
levou Orlando Silva, 41 anos, salário de R$ 3 mil, a recorrer ao consignado em
2012. "Eu tinha uma dívida de R$ 3 mil no cartão que rapidamente se
transformou em R$ 6,5 mil. Tomei emprestados R$ 10 mil e em 2014 refinanciei,
porque não estava dando conta de pagar", lamentou.
O céu é o limite
Servidores do Tribunal de Contas da União (TCU), do Senado e
do Ministério Público, que estão entre os mais bem pagos do serviço público
federal, recorrem ao Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das Relações de
Consumo (Ibedec) para tentar solucionar dívidas que, muitas vezes, são de mais
de R$ 700 mil. Isso não é para comprar imóveis, mas para ter carros e outros
bens de luxo, que dificilmente cabem no bolso de um assalariado, por maior que
seja sua renda. Viagens de férias e grandes festas, por exemplo, de casamento,
também resultam em dívidas de difícil solução
Parcela de até 90% da renda
Servidores públicos federais ganham acima da média dos
brasileiros, têm elevado nível de formação educacional e capacidade cognitiva
destacada, afinal, foram aprovados nos concursos públicos mais difíceis do
Brasil. Por que, então, não conseguem controlar uma coisa até aparentemente
simples, como o orçamento doméstico? Segundo especialistas em finanças
pessoais, a resposta é a ausência de educação financeira de grande parte dessas
pessoas. Há também o fato de saberem que o contracheque no próximo mês estará
garantido, o que funciona como um gatilho para gastos desnecessários,
parcelamentos a perder de vista com supérfluos.
"Eles sabem que não vão perder o emprego e é isso que
os leva a ter até 90% do salário comprometido com prestação de carro,
apartamento, cartões de crédito, bolsas caras e empregados. É preciso mudança
de cultura", diagnosticou Jason Vieira, economista chefe da Infinity
Asset. "A facilidade de acesso ao crédito é insana em um país que tem a
maior taxa de juros reais do mundo", criticou.
Freio
O diretor do Instituto Brasileiro de Estudo e Defesa das
Relações de Consumo (Ibedec), Geraldo Tardin, acrescenta que tramita no
Congresso um projeto que faz alterações no Código de Defesa do Consumidor (CDC)
para tentar frear propaganda que incentive o crédito. "É uma tentativa de
responsabilizar bancos e financeiras que induzem o cliente, com propaganda de
crédito pré-aprovado, sem burocracia, com saque na boca do caixa, sem
considerar se a pessoa já não está no limite da inadimplência", salientou.
Ele orienta o consumidor a ter cuidado, analisar despesas
como viagens de férias, festas de aniversário. "Sempre falo para a pessoa
pegar o juro, dividir pelo salário e ver o número de dias que vai ter que
trabalhar para honrar o empréstimo. No caso da compra de um carro, em 72 vezes,
com R$ 25 mil de juros, para quem ganha R$ 3 mil por mês, R$ 100 ao dia, serão
2,5 mil dias de trabalho. Vale a pena?"