G1 - 12/03/2018
Não há como o Estado brasileiro entrar no eixo sem enfrentar
a distorção absurda de remuneração entre os setores público e privado
e todas as questões espinhosas que o Estado brasileiro
precisará enfrentar nos próximos anos para recobrar a saúde fiscal, a mais
difícil diz respeito aos privilégios do funcionalismo.
É uma questão explosiva, que costuma provocar uma reação
corporativa virulenta. O próprio uso da palavra “privilégio” desperta reações
apaixonadas. É mesmo injusto, apenas com base num auxílio-moradia aqui ou numa
remuneração absurda acolá, estereotipar todos os funcionários públicos como
nababos ou marajás.
São, afinal, “servidores” do público. Em tese, escolheram
uma carreira potencialmente menos lucrativa do que poderiam ter no setor
privado em nome do dever cívico. Mereceriam, por isso, maior segurança,
estabilidade e benefícios compatíveis.
A cada dia, contudo, novos fatos se encarregam de desmentir
essa visão. “Servidores federais com mesma idade, tempo no emprego, instrução,
sexo, etnia e ocupação ganham quase o dobro do que trabalhadores da iniciativa
privada de mesmas características”, afirma o economista Gabriel Nemer, do
Instituto Mercado Popular.
Nemer e o também economista Naércio Menezes chegaram às
seguintes conclusões a respeito da remuneração do funcionalismo, numa análise
publicada em novembro passado pelo Insper:
- Na média, a diferença salarial entre os setores público e
privado cresceu, entre 1995 e 2015, de 70% para 80%;
- Na esfera federal, a diferença salarial média é de 270%. Na
estadual, de 125%. Na municipal, de 32%;
- A parcela dessa diferença que pode ser explicada por
diferenças na demografia, instrução e outros fatores caiu de 73% para 54%;
- A parcela que não pode ser explicada – uma espécie de
“prêmio” pago ao funcionário público apenas por ser funcionário público –
cresceu de 50,7% a 93,5% na esfera federal;
- Para os funcionários estaduais, o prêmio era negativo em
1995 (-1,4%) e passou a 27,8% em 2015. Apenas o funcionário público muncipal
tem prêmio negativo (-2,5%), embora ele também tenha crescido;
Os prêmios salariais existem não apenas no alto escalão, mas
em todos os níveis. Para um funcionário de baixa instrução, é de 71% na esfera
federal, de 20% na estadual e de 6% na municipal. Para os 10% mais pobres, é de
17% na federal.
Na Alemanha, esse prêmio é de 10%. Na França, de 10,5% – mas
os funcionários mais qualificados levam desvantagem (-11,6% para diretores). Na
Dinamarca, os funcionários públicos ganham 14% a menos que seus congêneres no
setor privado.
Se a situação brasileira não configura privilégio, pense
então numa carreira com as seguintes características:
- Establidade garantida pela Constituição, mesmo para
atividades em que não faz sentido – de bibliotecário a faxineiro;
- Regime previdenciário próprio e generoso na idade e no
cálculo das aposentadorias, em especial para policiais, professores e militares
– a que diversas categorias se aferraram para melar a reforma da Previdência;
- Penduricalhos salariais de todo tipo, como auxílio-moradia,
em especial a juízes e procuradores – dois terços dos juízes (cujo dever exige
cumprimento estrito da lei) ganham acima do teto constitucional;
- Isenção, em nome da estabilidade, da tunga mensal do Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) – um imposto disfarçado que apenas os
ignorantes insistem em chamar de direito (em 30 anos, a taxa sobre o capital do
trabalhador ultrapassa 60%);
- Licenças-pêmio, adicionais e sextas-partes, além dos
reajustes salariais periódicos, que elevaram, entre 1995 e 2015, a diferença
salarial entre os setores público e privado a níveis inaceitáveis, como revela
o estudo de Nemer e Menezes;
- Gratificações por exercício de cargos e funções, tempo de
serviço, localização, exposição, viagens, qualificação, bônus de eficiência
(quase sempre avaliada pela nota máxima), em boa parte incorporadas aos
salários e aposentadorias – elas creceram 6,7% em 2017 e somaram R$ 42,3
bilhões, elevando em 77% o gasto da União com pessoal, segundo publicou o
jornal Folha de S.Paulo.
Fica difícil encontrar palavras no idioma para definir o que
distingue o trabalho nos setores público e privado. Poucas parecem tão
adequadas para qualificar a situação do funcionalismo no Brasil quanto
“privilégio”.
Por Helio Gurovitz