Instituto Millenium
- 22/10/2019
Na prática, o que elas permitem é a possibilidade dos
salários dos servidores ultrapassarem o teto especificado
Se você nos acompanha aqui no Millenium Fiscaliza, caro
leitor, já deve ter percebido nossa preocupação com o que o Estado faz com o
seu e o nosso dinheiro. Por aqui, já tratamos dos custos de nossos políticos e
seus privilégios, assim como dos grandes benefícios recebidos pelos magistrados
em nosso país. Hoje trataremos de um dos maiores problemas que permeiam a
estrutura dos Três Poderes brasileiros: as chamadas verbas indenizatórias.
Para compreendermos o que são estas verbas indenizatórias do
serviço público, precisamos fazer uma diferenciação entre os vencimentos, ou
seja, a soma da parte fixa recebida pelo servidor pelo exercício de sua função
laborativa específica, e as vantagens pecuniárias concedidas a esses servidores
na forma de adicionais – como as gratificações, por exemplo. As verbas
indenizatórias, incluídas nesse segundo grupo, são aqueles valores pagos, por
fora do salário fixo dos servidores, a título de “indenização”. Como não estão
condicionadas a uma ação específica do servidor em serviço, mas apenas a uma
“situação”, muitas vezes adversa, as verbas indenizatórias não incluem a
contraprestação e a elas acrescem-se, geralmente, gastos como ajudas de custo,
adicional de um terço de férias, diárias, auxílio-transporte, auxílio-alimentação,
entre outros.
E o que acontece com estas verbas na realidade? Na prática,
o que elas permitem é a possibilidade dos salários dos servidores ultrapassarem
o teto especificado para cada área. Assim, com tetos que se tornam meramente
ilustrativos, torna-se possível ganhar bastante mais do que se deveria,
acumulando uma série de benefícios. Para além disso, ainda é possível que se
faça uso destas verbas sem que seus gastos sejam identificados com a
transparência necessárias.
Quando trata-se de verbas indenizatórias concedidas a
juízes, o problema se apresenta ainda mais grave: primeiro, porque são eles que
definem quais e quanto dos benefícios eles próprios irão receber, o que, via de
regra, tem significado que muitas dessas verbas não possuem sequer caráter de
indenização. Como trata-se de uma prática autorregulatória, quem autorregula
tem o poder da régua da regulação. O objetivo é só um, como falamos: criar uma
zona jurídica um tanto quanto turva para que se possa ultrapassar o teto dos
salários e receber mais do que a lei, em teoria, permite.
As verbas indenizatórias são legais?
Nos últimos anos, muito se tem discutido se estes
super-salários seriam constitucionais ou não. Segundo a Constituição Federal, o
artigo 37, inciso XI, impõe o limite remuneratório aos ocupantes de cargos,
funções e empregos públicos. Nestes casos, os salários teriam um teto máximo,
que seria correspondente ao salário dos Ministros do Supremo Tribunal Federal
(STF) – que, atualmente, está fixado em R$ 39.293,00 –, com os demais
servidores sendo pagos proporcionalmente às demais funções. No entanto, o
próprio artigo 37, no parágrafo 11, determina que, para efeito dos limites
remuneratórios, não serão computadas as parcelas de caráter indenizatório previstas
em lei. E é justamente nesta brecha que os super-salários se escondem. A
questão é que, a princípio, não se pode dizer que as remunerações sejam
ilegais; o que se questiona é a (i)moralidade destes ganhos face ao que recebe
o restante da população. Afinal, por que juízes ganham verbas para moradia e
transporte, por exemplo, e grande parte da população não? Para tentar reverter
isto, discute-se no STF que, caso estas verbas sejam usadas com “a única
finalidade de burlar o teto remuneratório fixado constitucionalmente”, os
super-salários são considerados, sim, inconstitucionais. No entanto, esta
decisão ainda está longe de ser finalizada e votada.
Um dos principais problemas da fixação de um teto salarial
com esta brecha para o que pode ser considerada uma verdadeira farra com as
verbas indenizatórias estaria, a princípio, no chamado “efeito cascata”. É que
quando um chamado “direito” é adquirido pela parte de cima da pirâmide, todos
os servidores abaixo passam a poder recorrer aos mesmos direitos, tomadas as
devidas proporções. A questão é que a ponta de baixo pirâmide possui muito mais
funcionários, o que resulta em um impacto devastador nas contas públicas.
Vejamos um exemplo de Minas Gerais sobre como estes gastos impactam os cofres
públicos.
Segundo fonte do G1, o estado de Minas Gerais repassou, em
2018, quase R$ 4,8 bilhões ao Tribunal de Justiça e R$ 1,9 bilhão ao Ministério
apenas para pagamento dos servidores. Mesmo com a dívida pública do Estado
ultrapassando os R$ 115,6 bilhões, as verbas indenizatórias e seus
penduricalhos têm garantido a manutenção dos super-salários no estado. Para se
ter uma ideia, apenas um juiz, isso mesmo, um juiz, recebeu o valor de R$
752.159,39, conforme aponta o Portal da Transparência. O nome dele é Paulo
Antonio de Carvalho, juiz do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). O G1
entrevistou Gil Castelo Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas,
entidade que analisa gastos públicos no Brasil, que ponderou que, apesar da
legalidade, os super-salários deveriam ser analisados em um contexto mais
amplo. Para ele, “o Judiciário não pode ser uma ilha de prosperidade dentro de
um país quebrado”. É realmente revoltante, não?
Um outro caso aterrador aconteceu em Mato Grosso, em 2017: o
juiz Mirko Vincenzo Giannotte, da 6ª Vara de Sinop (MT), após receber R$
503.928,79, chegou a dizer em entrevista ao jornal O Globo que não estava “nem
aí [para a polêmica]”. Além disso, afirmou estar “dentro da lei”, dizendo,
inclusive, que estava até recebendo menos do que deveria: “Eu cumpro a lei e
quero que cumpram comigo”. O salário do juiz incluía, além da remuneração
paradigma, indenizações, gratificações e “vantagens eventuais”, ou seja,
valores que poderiam servir para qualquer coisa. O que espanta no caso é que o
próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) achou o salário abusivo e afirmou
veementemente não ter autorizado pagamento desse porte no Estado. Na ocasião, o
ministro do CNJ, João Otávio de Noronha, pediu “a abertura de Pedido de
Providências para suspender qualquer pagamento de passivos aos magistrados até
que os fatos sejam esclarecidos”.
E com a crise? Como ficam as verbas indenizatórias?
Você deve estar aí pensando que, com a crise, isto passou a
ser revisto e reconsiderado pelos nossos juízes, não? Pois é aí que você se
engana, caro leitor. A situação nos últimos anos não apenas não melhorou como
até piorou. É que, independente do que se diga, os valores não mentem. Como se
pode ver, o caso do juiz de Mato Grosso não foi isolado. Segundo matéria da
Folha, apesar da crise, em 2017, o gasto com benefícios ao judiciário aumentou
30%, um recorde até então. O montante representa 90,5% do Orçamento do
Judiciário, distribuído entre 448,9 mil funcionários. Se voltarmos a 2014,
quando a crise se anunciava, e contabilizarmos os valores até 2017, no seu
auge, o aumento total foi de R$ 8,1 bilhões, equivalente a 11% em um período em
que a nossa economia retraiu 5,6%. Segundo análise do professor Luciano da
Rosa, do Departamento de Ciências Políticas da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS), o problema está, como já apontado, na enorme autonomia
administrativa e financeira da Justiça brasileira: “diversas decisões sobre
gastos do Poder Judiciário são tomadas pelos próprios magistrados, como
abertura de concursos e verbas indenizatórias”, afirma.
O resultado disso é uma verdadeira inversão de valores.
Literalmente. Segundo levantamento feito pelo procurador federal Carlos André
Studart Pereira, publicado no ConJur em texto chamado “O Teto virou Piso”, há
juízes que chegam a receber até mais que os ministros do STF. Há o caso de um
juiz federal de Curitiba que, em um mês, recebeu R$ 64 mil, com os benefícios
inclusos. Outro levou R$ 73 mil. Um terceiro, afastado da jurisdição, embolsou
R$ 52,5 mil. Isto em apenas um mês. Para conferir o texto completo, acesse
aqui.
Ampliando o levantamento de Pereira, a procuradora Marina
Fontoura de Andrade analisa em um artigo que sendo, por exemplo, o direito à
moradia um direito social de caráter programático, ou seja, que vai se concretizando
gradativamente, na medida da lei, estas verbas indenizatórias, nestes casos,
poderiam ser consideradas ilegais – afinal, estamos falando de um direito que
deveria em teoria estender-se a todos os servidores federais. Afirma ela que
“se não for assim, o Poder Público estará tratando, de forma desigual, aqueles
que merecem tratamento idêntico, por estarem, em termos de transferência de
moradia, nas mesmas condições fáticas”. O que busca a procuradora, no fundo, é
embaralhar a ideia de legalidade em torno das verbas indenizatórias e nos
provar que, sim, elas são passíveis de “reparação”. Embora, na prática, ainda
não se possa fazer nada quanto a isso, afinal trata-se de um caso de
“autotutela” em que os juízes decidem por eles próprios, já se cria um ambiente
progressivo de enfrentamento às verbas indenizatórias.
Como seria a política sem as verbas indenizatórias?
Embora ainda não tenhamos muitos casos de referência, em
maio deste ano a cidade de Juiz de Fora aprovou o fim das verbas indenizatórias
para o custeio de despesas dos gabinetes dos 19 vereadores da cidade. Aos
poucos, o sistema será substituído por um sistema licitatório, similar ao
utilizado para quaisquer obras públicas feitas pelo país à fora. A ideia é que
este novo formato confira maior transparência e eficiência dos gastos,
resultando em uma economia de até 40% ao ano. Embora este número seja ainda uma
estimativa, a expectativa é boa, pois só no ano passado foram gastos R$ 421 mil
apenas com consultoria, valor correspondente a 33% de todos os gastos para o
ano de 2018 na Casa. Imagine se ideias similares a essa se espalham por todo o
judiciário brasileiro? Seria uma economia realmente substancial para os cofres
públicos, além da resolução das questões éticas aqui levantadas. Acreditamos que
reduzir essa estrutura do Judiciário, levando em conta que no Brasil nada é
feito de maneira otimizada, diferentemente de outros países, além de atentar
para a enorme burocracia estatal que nos acompanha, pode ser algo complexo e
que levará muitos anos. Mesmo assim, isto não é motivo para que não se faça o
que é possível num curto e médio prazo. Primeiro, corta-se aquilo que não é
ético; depois, atentamos justamente para onde se pode reduzir gastos de um lado
para que se invista em outros setores de nosso país. Toda ação tem um começo e
podemos começar agora.
Todos os dados sobre as verbas indenizatórias podem ser
encontrados dentro dos portais da transparência que temos disponíveis em todo
país. No entanto, há uma dificuldade no acesso, na medida em que, em cada
setor, ele está colocado de forma diferente e sem um padrão no que se refere a
gastos, etc. Por conta disso, o Imil recomenda que você cobre essa
transparência no Conselho Nacional de Justiça para que essas informações sejam
disponibilizadas em locais de fácil acesso e com formas mais simples de
verificação. Transparência também é isso.