Terra - 19/01/2020
Lei de 1958 garante benefício a 194 filhas de
ex-parlamentares e servidores; uma delas foi processada por não informar que
tinha marido
Brasília - A Câmara e o Senado pagam pensões mensais de até
R$ 35 mil a filhas solteiras de ex-parlamentares e ex-servidores. Previsto numa
lei sancionada por Juscelino Kubitschek em março de 1958, o benefício atende
até hoje 194 mulheres e custa, por ano, R$ 30 milhões - o equivalente ao
dinheiro necessário para construir 500 casas populares do Minha Casa Minha
Vida. A norma foi derrubada em 1990, mas foi mantido o privilégio para quem já
estava na folha de pagamento.
Denúncias de pagamento indevido não faltam. No mês passado,
a Polícia Legislativa passou cinco dias no Rio para investigar o estado civil
de uma pensionista. A notificação partiu do Tribunal de Contas da União (TCU),
que apontou inconsistências no registro da beneficiada a partir de cruzamentos
de bases de dados.
Num relatório sobre a viagem, um agente da Polícia
Legislativa escreveu que, após uma "exaustiva" investigação,
descobriu que a mulher tinha um marido. A pensionista foi indiciada por
estelionato em inquérito sigiloso encaminhado ao Ministério Público Federal.
Pelos critérios do Congresso, a pensão deve ser paga até a filha
se casar, ter uma união estável ou conseguir um emprego público permanente.
Mesmo quando completa 21 anos, a filha solteira mantém o direito.
Uma das maiores pensões do Congresso é paga à filha de um
ex-analista do Senado. Desde 1989, ela ganha R$ 35.858,94 por mês, em valores
brutos. Outras 29 mulheres recebem, cada uma, R$ 29.432,27 de pensão por serem
dependentes de ex-servidores da Casa. Todas estão incluídas na categoria
"filha maior solteira" na folha de pagamento.
Na relação de beneficiárias da Câmara está a filha de um
ex-deputado por São Paulo, que morreu em 1974, após nove anos de atuação
legislativa. Solteira no cadastro da Câmara, a pensionista Helena Hirata mora
há 49 anos em Paris e recebe R$ 16.881,50 por mês. Filósofa e pesquisadora, ela
atua num centro de pesquisa da capital francesa.
Ao Estado, a pesquisadora admitiu não depender da pensão e
ter outras fontes de renda, inclusive como aposentada do centro de pesquisas
francês. Disse, ainda, que o montante era automaticamente repassado à mãe dela.
"Ela faleceu em 2016 e desde então a pensão fica na minha conta",
afirmou Helena, de 73 anos.
É o mesmo valor da pensão que ganha a filha de um
ex-deputado federal do antigo Estado da Guanabara, unidade da federação extinta
há 44 anos. Empossado em 1967, o parlamentar morreu três anos depois e a sua
herdeira entrou no cadastro de pensionistas, de onde nunca mais saiu.
Câmara e Senado dizem que dependem das pensionistas para
atualizar cadastro
Tanto a Câmara quanto o Senado admitem que dependem das
próprias pensionistas para atualizar os cadastros. "O Senado fiscaliza,
anualmente, a condição de 'solteira' das pensionistas por meio do
recadastramento anual obrigatório que elas realizam, sob risco de suspensão ou
cancelamento da pensão", informou a Casa em nota. A Câmara não respondeu
ao pedido de esclarecimento.
A pensão para filhas solteiras não é benefício exclusivo do
Legislativo. Desembolsos também são feitos para pensionistas da União e do
Judiciário. Até 2014, a despesa total custava R$ 2,2 bilhões, incluindo pensões
civis e militares. O valor foi levantado em auditoria recente feita pelo TCU.
Em 2016, a Corte de Contas apontou 19 mil pagamentos com
suspeitas de serem indevidos para filhas solteiras mapeadas em 121 órgãos da
administração pública direta federal.
A fiscalização ocorreu porque o TCU foi confrontado com
denúncias de irregularidades na Câmara. As suspeitas estavam tanto na outorga
quanto na manutenção de pensões especiais a filhas de ex-servidores e de
ex-parlamentares.
O acórdão atacou pagamentos a filhas solteiras que eram, ao
mesmo tempo, beneficiárias e detentoras de atividades remuneradas nos setores
público e...