Autor(es): José Serra
O Estado de S. Paulo - 10/11/2011
ex-prefeito e ex-governador de São Paulo
É preciso profissionalizar o Estado brasileiro. Para isso é
necessária a tal "vontade política", que é a disposição para mudar o
que está errado. Mas só ela não basta: é preciso também criar as condições da
profissionalização. Começo relatando um caso e chego a uma proposta que,
entendo, contribuiria para modernizar o País e democratizar as relações entre
Estado e sociedade à medida que estimularia a competência no serviço público e
dificultaria os assaltos ao erário.
Quando eu era ministro da Saúde, recebi um senador, homem
sério e combativo.
"Serra, como você sabe, o cargo de coordenador da
Funasa no meu Estado está vago. Eu queria lhe sugerir um grande técnico,
correto e com experiência".
"Olha, não posso nomear alguém por esse caminho. Há os
governadores, senadores, grupos de deputados... Se eu atender a um, vou ter de
atender aos outros, que nem sempre trariam bons nomes como o seu. Além disso,
eu não posso pôr alguém num cargo importante que dependa de um político".
"O cara é muito bom!"
"Acredito! Mas não me diga quem é. Deixe que o Mauro
Ricardo (então presidente da Funasa) me apresente a lista de nomes que está
levantando. Se o seu técnico for bom como você diz, vai ser o escolhido".
Esse diálogo ocorreu de verdade e o senador, até hoje meu
amigo, compreendeu. A Funasa é a Fundação Nacional de Saúde, responsável,
durante minha gestão, pelas ações de prevenção e controle de doenças, de
saneamento básico e ambiental e de assistência à saúde dos povos indígenas. Seu
papel é importante na grande maioria dos Estados. Era, havia anos, vítima de
uma forma peculiar de preenchimento das gerências regionais. O grupo político
ligado ao governo federal que perdia a eleição local recebia, como consolo, a
chefia do órgão no Estado. Isso criava conflitos políticos e de coordenação
entre a Funasa, a secretaria estadual e as secretarias municipais de Saúde. Nem
sempre o Ministério da Saúde mandava na Funasa do Estado. E o que dizer, então,
da malversação de dinheiro público?
Além de não aceitar mais indicações, prestigiar servidores
experientes e promover frequentes auditorias, tomamos uma providência inédita:
dois decretos do presidente Fernando Henrique Cardoso exigindo que os gerentes
regionais fossem servidores do Ministério da Saúde com nível superior, ocupassem
cargo em comissão ou função de confiança por mais de cinco anos e tivessem, no
mínimo, dois anos de chefia. Assim, o profissionalismo foi vencendo o
clientelismo. A Funasa mudou de cara e melhorou muito seu desempenho.
Sabem qual foi uma das primeiras providências do governo do
PT, já em março de 2003? A revogação dos dispositivos dos decretos que vedavam
o uso político da instituição. Afinal, era preciso acomodar os membros do
próprio partido e dos aliados - pessoas, na sua maioria, estranhas ao serviço
público e ineptas técnica e gerencialmente. Assim, a Funasa virou o lugar
geométrico dos escândalos mais visíveis na área da Saúde. Houve fraudes até no
atendimento à saúde indígena. Mas, em vez de retomar o controle do órgão, o
governo atual decidiu retirar de seu âmbito a área de epidemiologia e controle
de doenças e da saúde indígena. Em nove anos, assistiu-se à alta rotatividade
do loteamento de seus cargos e à destruição de uma instituição responsável por
grandes avanços na saúde pública brasileira.
Outras experiências dramáticas na área da Saúde foram os
loteamentos políticos de duas instituições que criamos: a Agência de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e a Agência Nacional de Saúde, voltada para a regulação dos
seguros e planos de saúde. O Senado referendou a indicação, pelo Executivo, de
diretores com perfil técnico e gerencial. Na época, ninguém procurou o
Ministério da Saúde ou a Casa Civil para sugerir nomes para as duas agências.
Não havia mercado de indicações.
O poder de um diretor de agência é imenso, pois desfruta
estabilidade durante seu mandato. Mas o governo Lula mudou o padrão e várias
diretorias foram sendo preenchidas por "representantes" de partidos.
O caso talvez mais simbólico de nomeação esdrúxula foi o do atual e controvertido
governador de Brasília, Agnelo Queiroz. Depois que perdeu a eleição para o
Senado em 2006, descolou um cargo na diretoria da Anvisa, até se candidatar ao
governo, em 2010.
É preciso acabar com o loteamento dos cargos de livre
nomeação, os chamados cargos em comissão - que, na administração federal
direta, chegam a 24 mil. A solução não consiste em substituir esses cargos em
comissão por cargos concursados, que criariam uma rigidez excessiva, nem apenas
em reduzir o seu número, o que, aliás, precisa ser feito.
O meio mais adequado seria o da certificação, como fez a
Funasa no governo FHC, fixando requisitos mínimos para os ocupantes de todos os
cargos de livre provimento. Por exemplo, os cargos gerenciais de nível
operacional deveriam ser reservados a funcionários de carreira do próprio órgão
e, entre eles, os mais preparados. Além de valorizar os servidores públicos,
isso garantiria que as mudanças de governo não afetassem o dia a dia da
administração.
Para os cargos de direção de maior nível hierárquico seria admitida
a contratação de pessoas externas ao serviço público, mas com exigências de
formação profissional compatível e experiência anterior em cargos gerenciais.
Enfim, haveria uma matriz de dupla entrada, relativamente
ampla, de cargos e requisitos. Essas regras seriam aplicadas mesmo nos casos de
provimento não tão livre (pois exigem aprovação do Senado), como os das
agências reguladoras.
As novas normas, estendidas a Estados e municípios e
implantadas de forma gradual, dinamizariam e melhorariam o sentido de muitos
cursos técnicos e universitários que não oferecem bons lugares no mercado de
trabalho. Os cursos voltados para a administração pública passariam a ser mais
do que a bola da vez: fariam parte da profissionalização do Estado brasileiro,
ou seja, da melhoria na prestação de serviços a quem, de fato, paga a conta: o
povo.