segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A nova lei da AGU: república e democracia


Pedro Abramovay

Valor Econômico      -     07/01/2013




Em meio às denúncias da operação Porto Seguro voltou a ganhar relevo um debate importante sobre a nova lei da Advocacia-Geral da União (AGU).

Um dos temas centrais é: "devem os consultores jurídicos dos ministérios serem necessariamente advogados da União de carreira? Ou o governo pode recrutar bons profissionais no mercado?"

Os setores corporativos se apressaram a dizer que a atual crise mostra que deve-se dar mais poder aos concursados. Mas vale lembrar que a maioria dos envolvidos na operação Porto Seguro era de servidores de carreira. Portanto, misturar este caso com o debate da lei é um equívoco.
As bases teóricas que fundamentam o crescimento das carreiras de Estado não foram atualizadas

A discussão aqui é outra e revela a ponta de um iceberg que deve ser exposto para que possamos debater a fundo que tipo de Estado nós queremos. Um debate sobre república e democracia. As duas podem conviver?

Se o governo Fernando Henrique apresentou uma proposta de reforma do Estado ambiciosa, formatada por Bresser-Pereira - proposta que se pode defender ou rejeitar, mas que foi publicamente apresentada -, o governo Lula produziu uma profunda reforma do Estado, mas nunca apresentou um plano claro ou uma discussão profunda de suas consequências.

A reforma que ocorreu nos dois mandatos Lula passou pela recuperação do Estado como ator de produção do desenvolvimento e de redução das desigualdades. O investimento no setor público estatal foi enorme com abertura em massa de concursos públicos e aumento dos salários dessas carreiras. Segundo o Ministério do Planejamento foram contratados 151,2 mil servidores públicos por concurso durante o governo Lula contra 51,6 mil no governo FHC. A despesa média por servidor teve um crescimento real de 70% no período. 

Polícia Federal, Receita Federal, gestores públicos, diplomatas e várias outras carreiras foram reestruturadas e revalorizadas.

Mas qual o destino dessas carreiras? Qual o papel do servidor público em um Estado forte no início do século XXI? As bases teóricas que fundamentam o crescimento das carreiras de Estado foram formuladas em um contexto econômico completamente distinto do atual e não parecem ter sido atualizadas.

Fernando Henrique Cardoso, o sociólogo, em um de seus mais importantes trabalhos, já alertou para os riscos para a democracia de um Estado que tem na burocracia técnica o motor político para a condução de seus rumos. Para Cardoso, a formação de anéis burocráticos é o resultado de uma aliança perversa entre interesses privados e a burocracia legitimada pelos concursos públicos. Essa aliança se apoia na ideia de "ilhas de racionalidade" que se opõem a toda influência externa na produção de políticas públicas, como se a racionalidade pudesse propor uma única alternativa - técnica e correta - para os problemas da sociedade.

As influências externas seriam sempre contaminadas por interesses espúrios.
Ocorre que este tipo de pensamento exclui a permeabilidade do Estado a demandas da sociedade civil. É um pensamento que sugere que, para construir um Estado republicano, seria necessário abdicar da democracia. O voto perde o sentido de manifestação da vontade popular para a mudança de rumos do país, pois não haveria espaço para opções políticas. E este é o centro do debate. Sempre há espaço para opções políticas.

Uma visão sobre o Estado que imagine que a corrupção seja um produto necessário da política é evidentemente autoritária e retira das pessoas completamente a esperança de poder influir nos destinos da nação. Se temos críticas à qualidade dos políticos devemos pensar em maneiras de reformar o sistema político e não em diminuir o espaço da democracia em nossa república.

É claro que isto não significa que o Estado não deva ser composto, sobretudo, por servidores concursados. Ou que o Estado não deva possuir uma estrutura bem remunerada e bem qualificada de servidores. A questão é que falta um debate sério sobre o papel desses servidores. Ou da relação desses servidores com a democracia.

Os servidores concursados devem oferecer aos políticos cenários e subsídios para que estes façam as melhores escolhas; devem ser os melhores profissionais para executar essas escolhas e devem estar cientes que têm que ter uma profunda lealdade tanto com a república quanto com a democracia.

E o que tudo isso tem a ver com os consultores jurídicos dos ministérios? Não há dúvidas de que os advogados da União devem constituir a esmagadora maioria da força de trabalho jurídico do governo federal. Entretanto, o papel dessas consultorias é um papel fundamental para o desenvolvimento de políticas públicas.

Elas não funcionam como mero órgão de controle da administração, ao contrário, o seu papel precípuo é fornecer os instrumentos jurídicos para que as decisões políticas possam ocorrer.

E esses instrumentos jurídicos se desenham a partir de opções políticas. Não existe um parecer jurídico desprovido de visão política. Cotas para negros são constitucionais? A demarcação de uma determinada terra indígena deve ser feita? Um determinado preso deve ser extraditado a seu país? Essas são perguntas que até mesmo o STF pode se dividir ao respondê-las. Não é possível, portanto, esconder o caráter político dessas decisões jurídicas.

É por isso que o ministro deve poder escolher o seu consultor jurídico. Trata-se do interlocutor qualificado, que compartilha de suas visões políticas, e poderá gerir uma equipe de advogados públicos aptos a darem suporte jurídico às políticas públicas definidas pelo executivo.

Conjugar uma burocracia eficiente com atores que tenham o respaldo da escolha das urnas é a única maneira de se conciliar república com democracia. E a Constituição não admite que se abra mão nem de uma nem de outra.

Pedro Abramovay é professor da FGV Direito Rio


Share This

Pellentesque vitae lectus in mauris sollicitudin ornare sit amet eget ligula. Donec pharetra, arcu eu consectetur semper, est nulla sodales risus, vel efficitur orci justo quis tellus. Phasellus sit amet est pharetra