Sidney Jard
O Estado de S. Paulo
- 28/06/2012
Em editorial publicado no dia 6 de junho, o Estado chamou a
atenção para a preocupante situação da greve nas universidades federais
brasileiras, que tem sido tratada, em linguagem orwelliana, como um "não
movimento" pelo Ministério da Educação (MEC), pelas entidades sindicais
pró-governo e pela mídia partidária oficial. Até a publicação do referido
texto, eram 51 federais paralisadas num universo de 59 instituições, entre elas
a recém-criada Universidade Federal do ABC (UFABC).
A adesão da UFABC à greve das Instituições Federais de
Ensino Superior (Ifes) revestiu o movimento dos professores universitários de
nova simbologia. A "universidade do século 21", como foi batizada
pelos seus idealizadores, foi a primeira instituição universitária criada no
processo de expansão do ensino superior brasileiro promovido pelo governo de
Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010). Um modelo a ser seguido pelas demais
instituições criadas no Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão
das Universidades Federais (Reuni).
Com sede no "coração da indústria brasileira", a
UFABC foi, nos seus primeiros anos de atividade, a menina dos olhos do então
presidente da República. O próprio projeto de criação da universidade,
apresentado ao Congresso Nacional em julho de 2004, ressalta que se tratava da
reparação de uma injustiça histórica com o ABC paulista, palco de fulgurantes
lutas pela redemocratização do País - movimento que pôs lado a lado o professor
universitário Fernando Henrique Cardoso e o operário sindicalista Luiz Inácio
Lula da Silva, que, anos mais tarde, utilizariam essa mesma herança política
para pleitear e ocupar o cargo de principais mandatários da Nação.
Se, por um lado, é notória a influência de intelectuais
vinculados à Academia Brasileira de Ciências (ABC) na elaboração do projeto
pedagógico da nova instituição, por outro, é igualmente digna de nota a atuação
decisiva das chamadas "lideranças locais" na efetivação do projeto
político da universidade. Assim, o "ABC" da UFABC representa a
convergência, no mundo universitário, de duas grandes utopias: a utopia
científica e tecnológica da Academia Brasileira de Ciências; e a utopia do
desenvolvimento econômico e social das sete cidades que integram a famosa
região metropolitana de São Paulo. O "ABC das ciências" e o "ABC
das lutas".
Mas foram necessários apenas cinco anos para a utopia
ufabceana defrontar o realismo machadiano do ensino superior brasileiro.
Em reiteradas visitas institucionais, acompanhando o então
presidente da República, o ex-ministro da Educação Fernando Haddad afirmava,
com convicção - mais política do que científica -, que a UFABC seria a melhor
universidade do Brasil, superando a Universidade de São Paulo (USP), sua
própria casa, como ele gostava de salientar. No entanto, o discurso ministerial
parecia revelar o esquecimento de uma lição básica de sociologia: atentar para
"as condições de que se rodeia a ciência como vocação", como diria o
velho mestre Max Weber.
Essas condições são particularmente preocupantes nas novas
universidades federais. Jovens aspirantes à carreira científica foram
convertidos em gestores das instituições universitárias recém-criadas. Inúmeras
reuniões administrativas, relatórios técnicos, a abertura de editais e o
acompanhamento de licitações fazem parte do cotidiano dos professores das novas
Ifes, entre outras funções de caráter burocrático. Não por acaso, os
protagonistas da atual paralisação são os recém-doutores contratados para as
novas universidades ou para os campi em expansão de instituições já consolidadas,
particularmente aquelas que ainda carecem de condições materiais mínimas para o
desenvolvimento dos requisitos constitucionais elementares de uma universidade:
ensino, extensão e pesquisa.
Não bastassem as burocráticas condições de desenvolvimento
das atividades científicas, o processo de expansão do ensino superior
brasileiro - um dos principais feitos do agora candidato à Prefeitura de São
Paulo - não foi acompanhado por uma política efetiva de reestruturação e
valorização da carreira universitária.
O resultado é que atualmente, descontada a inflação, os
professores iniciantes recebem, comparativamente, menos do que recebiam no
final do primeiro mandato de outro ilustre Fernando, que também parece ter-se
esquecido dos ensinamentos clássicos da sociologia durante o exercício do
poder, ao menos no que se refere às condições externas que cingem a prática
acadêmica.
Assim, de Fernando a Fernando e de descaso em descaso,
chegamos à atual situação da profissão docente nas universidades federais: uma
das carreiras do serviço público de maior reconhecimento social e de menor
remuneração salarial. Retrato escandalosamente weberiano da proletarização do
trabalho científico.
Talvez esta seja uma excelente oportunidade para o atual
ministro da Educação, professor Aloizio Mercadante, recém-doutor pela
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), corrigir o equívoco dos seus antecessores
e implementar um plano de reestruturação da carreira docente à altura do
imperativo de expansão do ensino público, gratuito e de qualidade nas
universidades federais brasileiras.
Após um mês de paralisação, é um erro o MEC e o Ministério
do Planejamento, Orçamento e Gestão continuarem apostando no cansaço da
categoria e no poder desmobilizador das lideranças sindicais pró-governo sem,
mais uma vez, atentar para as condições externas que revestem a vocação
científica, "no sentido material do termo". Mas, como dizia Weber,
ciência e política são duas vocações, definitivamente.