BSPF - 20/08/2016
A partir de um projeto de lei apresentado pelo Poder
Executivo durante o primeiro ano de mandato do presidente Lula, o Congresso
aprovou a Lei 10.698/2003 que concedeu aumento de R$ 59,87 a todos “servidores
públicos federais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, das
autarquias e fundações públicas federais, ocupantes de cargos efetivos ou
empregos públicos”.
Na exposição de motivos do projeto de lei, o governo federal
explicou a finalidade do aumento: “A presente proposta visa a reduzir a
distância entre os valores da menor e da maior remuneração, por intermédio da
instituição de vantagem pecuniária individual, no valor fixo de R$ 59,87, que,
por ser o mesmo para todos os níveis, classes, padrões e categorias existentes,
representará uma primeira aproximação entre esses valores”.
Pois bem, o Executivo propôs e o Legislativo aprovou o
aumento de R$ 59,87 para os funcionários públicos da União. No entanto, o Poder
Judiciário não se conformou com a literalidade do texto e fez uma generosa
interpretação da lei, com desastrosas consequências para as contas públicas.
Vários órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público
ajuizaram ações nas quais se pedia um aumento além dos R$ 59,87. Segundo a
esperta argumentação apresentada, a concessão de um aumento de valor único para
todas as categorias de funcionários públicos feria o princípio da isonomia
salarial. Obviamente, os processos não pleiteavam o reconhecimento da alegada
inconstitucionalidade da lei para pedir a anulação do aumento.
Eles queriam
outra coisa, bem mais interessante a seus bolsos. Em respeito ao princípio da
isonomia, pediam que o valor de R$ 59,87 fosse aplicado apenas à categoria de
menor remuneração do serviço público e que às outras castas – pois é essa a
mentalidade que transparece nesse tipo de raciocínio – deveria ser dado um
aumento proporcional, e não apenas os míseros R$ 59,87.
A engenhosa interpretação do princípio da isonomia gerava
logicamente uma multiplicação de valores. Nas petições, aquilo que era por lei
um aumento de R$ 59,87 passava a ser, em alguns casos, um reajuste de 13,23% do
salário.
O mais grave é que a criativa visão do princípio da isonomia
teve calorosa acolhida por vários juízes e tribunais, que concederam os
aumentos pleiteados. A boquinha – que a essa altura já não era apenas uma
boquinha, mas um presentão – foi concedida a servidores de vários órgãos do
Judiciário, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ), Superior Tribunal
Militar (STM) e Tribunal Superior do Trabalho (TST).
Num primeiro momento, o Poder Executivo não tomou
conhecimento dessa multiplicação dos aumentos promovida pelo Judiciário. Soube
do desastre apenas quando o dinheiro começou a faltar e os órgãos começaram a
pedir crédito suplementar. Logicamente, a farra da isonomia tinha um alto preço
que não cabia no orçamento original.
As estimativas do impacto desses aumentos estão em torno de
R$ 2 bilhões, informa o jornal Valor. O cálculo foi feito tendo por base as
ações da Advocacia-Geral da União (AGU) protocoladas no Supremo Tribunal
Federal (STF) para barrar os reajustes concedidos aos servidores dos tribunais,
do Conselho Nacional do Ministério Público, do Conselho da Justiça Federal e da
Justiça Federal de 1.ª e 2.ª instâncias. Se todos os servidores reivindicassem
o mesmo benefício, o impacto anual seria superior a R$ 25 bilhões.
Felizmente, o STF vem rejeitando unanimemente a criativa
interpretação da isonomia e tem declarado inconstitucionais os reajustes
concedidos por órgãos do Poder Judiciário. Em alguns casos, como, por exemplo,
o dos servidores do TST, a Suprema Corte já concedeu medida liminar para
interromper o pagamento dos aumentos.
Num Estado Democrático de Direito não cabe transformar
isonomia em privilégio. Além de irresponsável com o dinheiro público, tal
alquimia é de uma despudorada perversidade.
Fonte: O Estado de S. Paulo (Editorial)