Correio Braziliense
- 13/01/2017
Matéria divulgada no Correio (6/1) dá conta de que as
paralisações no serviço público, no primeiro semestre de 2016, foram mais
numerosas e consumiram mais horas que as no setor privado. E que, no primeiro
caso, as principais reivindicações são por reajuste salarial e, no segundo,
contra salários atrasados. O cenário de crise ajuda a explicar o fenômeno. Como
demonstram os dados do Dieese, é crescente o número de acordos na iniciativa
privada - já em mais de 50% dos casos - com reajustes abaixo da inflação:
troca-se a recomposição do poder de compra do salário pela manutenção do
emprego; substitui-se mão de obra mais cara por mão de obra mais barata;
reduzem-se os prazos contratuais e a jornada de trabalho; aceita-se a informalidade
em detrimento dos direitos da formalização das relações de trabalho.
No serviço público, a estabilidade, para a maioria - que
reduz os riscos associados às paralisações -, amortece a percepção dos efeitos
de reajustes cada vez menos sistemáticos e inferiores à inflação. Onde, então,
residem as particularidades? Precisamente nas profundas diferenças existentes
no âmbito da própria administração. Há, hoje, enorme disparidade entre
diferentes carreiras e cargos, nas diversas estruturas do serviço público,
tornando algumas corporações extremamente poderosas e relegando à maioria o que
se poderia considerar como vala comum, falseando, inclusive, a própria imagem
que o grosso da população tem dos servidores em geral.
É inegável que as condições para ingresso no serviço público
impõem pesadas exigências e que determinados grupos exercem funções nem sequer
remotamente comparáveis com as do mercado privado, com responsabilidades
administrativas, civis e penais, e uma série de restrições ao exercício de qualquer
outra atividade. Mas é preciso reconhecer que a influência de certas
corporações nos altos escalões do Poder e o clamor pela independência na sua
atuação extrapolam os limites do que se poderia considerar como razoável numa
estrutura republicana genuinamente democrática e num contexto de
profissionalismo funcional e de clara definição entre os papéis da política e
da administração.
É bem verdade que os nossos governos têm grande contribuição
para esse estado de opacidade, de superposição - e, muitas vezes, de caos - que
cerca as relações entre o Estado e a sociedade, entre os governos e a
administração. Abusa-se do apadrinhamento e da partidarização, comprometendo a
boa gestão. Mistura-se o público com o privado, reforçando a herança
patrimonialista do Estado brasileiro. De qualquer maneira, não se pode ignorar
o fato de que algumas corporações, tornando reféns os governos, se julgam no
direito de paralisar o funcionamento de atividades essenciais e direcionar a
sua atuação para interesses específicos e transitórios.
Nesse sentido, é muito relevante, por exemplo, rediscutir a
prerrogativa de certas instituições de escolherem seus próprios dirigentes,
seus próprios pares, pois o interesse público - e permanente - deveria
vocacioná-las prioritariamente para o atendimento das necessidades da
população, e não para a satisfação de seus próprios integrantes. Em outras
palavras, as instituições públicas têm que estar voltadas para fora, têm que
ser a caixa de ressonância dos anseios dos cidadãos, e não criarem mecanismos
de proteção ou de autopreservação, erigindo barreiras ou se fechando em
redomas, que sirvam de abrigo às aspirações de caráter particularista, ao
individualismo.
Os governos têm grande responsabilidade pelo tratamento
específico e casuístico dado às reivindicações de cada grupo de servidores. A
falta de uma política de pessoal, em sentido amplo, e salarial, em sentido
estrito, se evidencia pela falta de critérios, de diretrizes, o que provoca
mais distorções e injustiças, pois tende a privilegiar os que causam mais
estragos ao funcionamento da máquina estatal e mais prejuízos à população em
geral. Ao tornar-se refém de certas corporações, o poder público acaba cedendo
às suas pretensões e abrindo brechas, como, por exemplo, mais recentemente, em relação
a determinadas categorias, atribuindo-lhes remunerações variáveis, tão ao gosto
de certas correntes liberais, em função de produtividade, desempenho, retorno,
como se devessem se beneficiar de uma espécie de participação nos lucros.
É, enfim, inaceitável que, decorridos mais de 28 anos da
promulgação da Constituição Cidadã, ainda não se tenha regulamentado o contido
no inciso VII do art. 37, que dispõe sobre o direito de greve, nos termos e nos
limites a serem definidos em lei específica, ordinária.
Por Roberto Bocaccio Piscitelli - Professor da Universidade
de Brasília