Consultor Jurídico
- 26/03/2019
No início do filme O Sétimo Selo, dirigido por Ingmar
Bergman, um cavaleiro medieval, recém-chegado das Cruzadas, enfrenta a Morte em
um jogo de xadrez. No primeiro contato com a Morte, percebendo o seu fim
iminente, o cavaleiro pede à Morte que “espere um pouco”. A Morte retruca,
insensível: “Vocês sempre dizem isso. Mas eu não vou adiar”. O cavaleiro afirma
ter visto em pinturas que a Morte aprecia jogos de xadrez e a convida para uma
partida. Embora a Morte desconfie que o convite é apenas astúcia do cavaleiro
para retardar o seu destino inelutável, termina por aceitar o jogo, pois a
Morte nunca perde. Entre os lances da partida, o cavaleiro tem oportunidade de
interrogar a si mesmo e à firmeza de sua fé, testemunhar a fragilidade do homem
diante da peste negra e preparar-se para o seu destino final.
A nova proposta de reforma da Previdência (PEC 6/2019), ao
menos como discurso oficial, é como a personagem Morte, retratada por Bergman.
Não aceita adiamentos. Considera-se inelutável. Não admite soluções alternativas
ou negociação de fundo, embora aceite o jogo do debate parlamentar e as
audiências públicas, pois está confiante de que no final será o resultado
incontornável do debate público. Outra semelhança notável: como a personagem
Morte no Sétimo Selo, a nova proposta da reforma da Previdência comunica mais
pelo silêncio, por suas lacunas, do que pelo que vem explicitamente enunciado.
Em Direito, é verdade, lacuna não é apenas silêncio: lacunas
são falhas ou omissões de regulação contrárias ao sistema jurídico,
prejudiciais e censuráveis, que exigem solução em concreto (pelo juiz) ou em
abstrato (pelo legislador).
Na reforma da Previdência proposta, muitas lacunas podem ser
apontadas, sobretudo nas regras de transição. Elas desafiam o princípio da
proteção da confiança, elemento destacado da segurança jurídica, base de
qualquer Estado de Direito. E, por vezes, o princípio da igualdade.
Há falha por assimetria e quebra de igualdade no percurso de
transição previsto para as regras do regime geral, do regime dos militares e do
regime próprio dos servidores. Há falha na ausência de “regras de transição de
segundo grau”, voz que utilizo para referir as regras que devem disciplinar a
“transição da transição”: a “transição das situações jurídicas de transição” já
previstas em emendas anteriores. É evidente também a ausência de regras de
transição objetivas ou institucionais, aquelas relacionadas aos efeitos
sistêmicos das alterações propostas, a exemplo de alguma norma que atenue o
impacto nos regimes próprios da redução das contribuições decorrente do
incentivo renovado aos regimes de previdência complementar e defina a
responsabilidade do poder público pela contabilização de passivos decorrentes
dessa migração relevante de contribuições de um regime para o outro. Há ainda
lacunas relacionadas à desconstitucionalização de grande parte do sistema
constitucional de previdência para a lei complementar.
No domínio temporal, o Direito persegue duas finalidades
tendencialmente conflitantes: por um lado, a estabilização das expectativas, a
garantia da segurança no planejamento pessoal, social e econômico e, por outro,
a inovação e adaptação da sociedade à evolução histórica e às circunstâncias.
Se o cidadão, a administração ou as empresas não puderem calcular as consequências
no futuro de suas decisões e comportamentos no presente, a autoridade será
negada, e a coesão social será impossível por insegurança jurídica. Se o
bloqueio à adaptação normativa for absoluto, por igual, a sociedade duvidará de
sua própria capacidade de responder aos desafios do futuro. Nesse domínio
conflitivo, as disposições transitórias permitem a criação de pontes temporais
ou normas especiais de passagem, assegurando a consideração dos fatos passados
e das normas vigentes (com seus efeitos), sem recusar a nova disciplina
normativa e a evolução e a dinâmica do Direito.
Regras de transição são essas normas de passagem, normas
provisórias e excepcionais que se esgotam com a realização no tempo da situação
que regulam. Mas como estão previstas — com falhas de assimetria e omissão na
regulação — as regras de transição da PEC 6/2019 não realizarão o propósito de
conciliar segurança e mudança, e desacreditarão as suas próprias disposições,
que não suscitarão confiança, pois sequer respeitaram as normas de transição
anteriores com um mínimo de proporcionalidade e justiça.
Por Paulo Modesto - Professor da Faculdade de Direito da
Universidade Federal da Bahia (UFBA), presidente do Instituto Brasileiro de
Direito Público e membro do Ministério Público da Bahia e da Academia de Letras
Jurídicas da Bahia.