Jornal Extra
- 30/01/2017
Brasília — No apagar das luzes de 2016, o governo federal
concedeu uma última rodada de reajustes salariais a servidores do Poder
Executivo e anunciou que se encerrava ali a mudança salarial de todas as
carreiras do funcionalismo. O processo de aumentos salariais começou em 2015,
ainda sob a gestão da então presidente Dilma Rousseff, mas ganhou mais força
após Michel Temer assumir o governo. Um levantamento feito pelo GLOBO sobre as
carreiras de nível superior do Executivo mostra que esse processo aprofundou as
desigualdades salariais no serviço público. Em 2019, quando todos os aumentos,
que são escalonados, forem concluídos, a diferença entre alguns desses salários
terá aumentado mais de 100%.
A defasagem entre o salário, no fim da carreira, de um
professor universitário titular — que tem o maior subsídio possível para um
docente federal — e um defensor público da União, por exemplo, era de R$ 5,4
mil em 2015 e passará a ser de R$ 11,1 mil em 2019, um aumento de 103%. No
início da carreira, a diferença é ainda maior. Um professor universitário com
doutorado, em regime de dedicação exclusiva, e um defensor tinham, em 2015, uma
defasagem de R$ 8,7 mil. Em 2019, quando a Defensoria terminar de receber o
reajuste, esse hiato passará a ser de R$ 14,7 mil.
Chama a atenção a comparação entre as carreiras mais
numerosas do funcionalismo — professores e militares — e as chamadas carreiras
de Estado, que reúnem auditores fiscais e do trabalho, defensores, diplomatas,
advogados da União e oficiais de inteligência, por exemplo. Como estas últimas
recebiam salários maiores, um simples reajuste idêntico em termos percentuais
já levaria a um aumento da diferença numérica entre os salários. Mas a situação
se agravou ainda mais porque o governo federal preferiu dar reajustes maiores,
inclusive em termos proporcionais, a algumas carreiras de Estado.
Professores e militares acabam tendo dificuldades para
negociar aumentos maiores de salário justamente por serem muito numerosos. Só
de oficiais das Forças Armadas, que são cargos necessariamente de nível
superior, por exemplo, são 51,7 mil. Os professores de magistério ativos somam
mais de 125 mil. Ou seja, qualquer reajuste tem um impacto enorme para os
cofres públicos. Tanto que docentes, por exemplo, tiveram aumentos médios,
parcelados, de 10,8% desde 2015. Já a Defensoria Pública, que tem apenas 626
funcionários na ativa, recebeu um reajuste médio — sancionado no fim do ano
passado — de cerca de 40%, parcelado em três anos. Os da Polícia Federal
chegaram a 43%, no caso de agentes e escrivães.
A maior parte das remunerações mais baixas do Executivo está
concentrada no Plano Geral de Cargos do Poder Executivo (PGPE), conhecido como
“carreirão”, e que inclui a base dos servidores da União. Entre eles, estão
servidores que dão suporte administrativo aos órgãos públicos, como médicos da
saúde pública, médicos do trabalho, farmacêuticos e químicos. Hoje, eles são
mais de 34 mil pessoas na ativa, 6,5 mil delas em cargos com exigência de
formação superior. Eles também tiveram um reajuste médio de 10,8%, assim como
os docentes, e, com isso, viram o salário no início da carreira sair de R$
1.990,22 para R$ 2.220,09, um reajuste nominal de R$ 229,87.
‘VALE A POLÍTICA DO MAIS FORTE’
As diferenças mais drásticas foram com os servidores da
Defensoria Pública da União. Em relação aos funcionários de nível superior do
PGPE, por exemplo, a defasagem salarial aumentou cerca de 40%, tanto no topo
quanto no início da carreira. Com um reajuste incluído em uma medida provisória
editada no fim do ano passado, e que deve começar a tramitar na volta do
recesso legislativo, a carreira de diplomacia terá uma diferença salarial
aproximadamente 30% maior em relação ao “carreirão” na remuneração inicial: vai
de um intervalo de R$ 13 mil em 2015 para R$ 16,9 mil em 2019.
— É uma questão de poder de barganha. Como o governo não tem
nenhuma política de hierarquização das carreiras, vale a política do mais
forte. Essas carreiras, além de ter um menor número de profissionais, conseguem
pressionar mais a União por conta da essencialidade dos cargos que eles operam
para o funcionamento da máquina — explicou o especialista em contas públicas
Raul Velloso.
Dois exemplos são a pressão exercida pela Polícia Federal e
pelos auditores fiscais da Receita ao longo de todo o ano passado. Os
funcionários do Fisco reduziram o ritmo de trabalho nas fiscalizações para pressionar
por um reajuste melhor e fizeram despencar a arrecadação com multas aplicadas
em um momento de crise fiscal. O reajuste dessa categoria foi incluído na mesma
medida provisória do da diplomacia, mas prevê, além de reajuste, um bônus de
eficiência e valorização da carreira.
No caso dos auditores do Fisco, o bônus por produtividade
negociado com o governo deve incluir, além dos ativos, 27 mil aposentados. O
valor a ser pago inicialmente é de R$ 15 mil, dividido em duas prestações.
Depois, virão parcelas menores de R$ 3 mil. A justificativa do governo é que as
fiscalizações conduzidas por esses profissionais demoram muitos anos para serem
concluídas. Ou seja, uma multa recolhida agora pode ter sido iniciada anos
atrás por um auditor que já se aposentou.
Já a PF utilizou como moeda de pressão a atuação na Operação
Lava-Jato. Além disso, chegou a ameaçar manifestação nos aeroportos na véspera
dos Jogos Olímpicos, o que serviu de pressão para que o projeto de aumento da
categoria fosse finalmente enviado ao Congresso.
— É claro que professores são uma carreira essencial, mas
não têm como pressão essa relação de urgência das coisas, como essas carreiras
têm. No caso dos auditores fiscais, o governo depende crucialmente da
arrecadação, isso dá força na hora da barganha — completou Velloso.
Diretor de macroeconomia do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), Cláudio Hamilton pondera que pesa em favor dessas carreiras um
número muito menor de aposentados. Se forem considerados ativos e inativos militares,
por exemplo, o número chega a 650 mil, contando praças e oficiais. Os
professores totalizam 187 mil. Os defensores, por sua vez, somam 674
funcionários na ativa e inativos. Servidores da carreira de diplomacia e
delegados da Polícia Federal, 4,4 mil e três mil, respectivamente.
Para os servidores civis, há o agravante de que quem está se
aposentando agora ingressou no serviço público antes da reforma de 2003, que
acabou com a paridade de salários entre ativos e inativos. Ou seja,
obrigatoriamente recebem o mesmo que os funcionários em exercício da função.
GREVES E PRESSÕES POR AUMENTO
Hamilton explica que essa pressão maior por reajustes reais
começou em 2011, ainda no governo Lula. Desde então, segundo ele, as carreiras
do funcionalismo têm recebido salários próximos à inflação. A exceção foi 2015,
quando não houve reajustes, apesar de o Índice de Preços ao Consumidor Amplo
(IPCA) ter superado os 10%. Os aumentos negociados naquele ano foram jogados
para 2016.
— De 2011 em diante a briga para manter um nível real de
aumento salarial ficou muito maior. A pressão aumentou — disse o economista do
Ipea.
As greves e pressões por aumentos têm sido um problema tão
grande nos últimos anos que os governos têm preferido parcelar os reajustes por
vários anos, geralmente até o fim do mandato, como forma de evitar o desgaste
político. Hamilton ponderou que a tendência é que esses aumentos fiquem menores
após essa leva de reajustes, que vão até 2019 para as carreiras que tiveram
aprovação posterior. Isso porque o governo aprovou no ano passado um teto para
os gastos públicos, que fixa o crescimento da despesa à inflação do ano
anterior, e deve servir como desculpa na hora da negociação:
— Com a PEC, há uma tendência de diminuição dos gastos com
funcionalismo.
O Ministério do Planejamento foi procurado mas não quis se
manifestar sobre o aumento da discrepância salarial entre os servidores. Em
nota, limitou-se a dizer que há uma tendência no serviço público de contratar
profissionais com maior escolaridade e destacou que os servidores com nível
superior passaram de 281 mil em 2006 para 436 mil em 2016. Isso significa que
55% do contingente de servidores têm nível superior.
(Bárbara Nascimento - O Globo)